Compromisso com a democracia: nova pesquisa do InternetLab aborda necessidade de regras específicas que protejam a integridade do debate público nas plataformas

Documento debate sobre quais compromissos públicos de sociedades democráticas, como a brasileira, devem demandar de empresas de plataformas digitais na proteção contra conteúdos que visam abolir ou deslegitimar o Estado Democrático de Direito, os direitos políticos de cidadã(ãos) e processos eleitorais e cívicos.

Notícias Informação e Política 04.09.2023 por Ester Borges, Francisco Brito Cruz e Anna Martha Araújo

As eleições de 2022 evidenciaram que as plataformas de redes sociais e outros serviços se concretizaram como verdadeiras infraestruturas do debate público. Se, por um lado, esses intermediários carregam enorme porção das conversas entre as(os) cidadãs(os) sobre assuntos de interesse da vida cívica, por outro, observa-se o uso destas plataformas por agentes políticos e econômicos para a disseminação de propaganda antidemocrática que viabiliza movimentos políticos orientados a deslegitimar ou mesmo abolir pilares do Estado Democrático.

Isso gera uma série de desafios que, apesar de não terem necessariamente sua origem no meio digital – passando por um contexto muito mais amplo de intensa crise política que se constrói com força no Brasil desde pelo menos 2013 -, nos levam a refletir sobre qual o compromisso político democrático que deve ser assumido pelas empresas que controlam tais serviços independente de qualquer regulação estatal.

Nesse contexto, com o objetivo de debater e propor sobre quais compromissos públicos sociedades democráticas, como a brasileira, devem demandar de tais empresas no âmbito da moderação de conteúdo independentemente do que está definido pela regulação, o InternetLab lançaCompromisso com a democracia: Integridade eleitoral e o Estado Democrático de Direito nas políticas de plataformas digitais, o mais recente relatório da série “Diagnósticos e Recomendações”. 

O impacto das plataformas nas conversas sobre a vida cívica

Ressalvadas as diferenças entre empresas e seus serviços, parte fundamental da atividade das plataformas de internet consiste na organização de seus usuários e usuárias e do conteúdo por eles(as) produzido, isto é, na arquitetura e modulação da expressão no meio digital. Por arbitrar decisões sobre a expressão humana em escala industrial e global, a moderação de conteúdo oferecida por plataformas de internet é uma atividade que afeta continuamente uma série de valores democráticos e direitos humanos. 

Estes desafios ganham nova roupagem a partir do posicionamento destes serviços como infraestrutura do debate público a respeito de processos democráticos e eleitorais. O aumento do uso estratégico da comunicação digital para a propagação de campanhas que visam a deslegitimação do regime democrático e de suas instituições suscitam a questão de como esta atividade de elaborar e aplicar regras de conteúdo e comportamento em comunidades online deve lidar com estes comportamento. Mais especificamente, nos faz refletir se há um compromisso mínimo que as empresas detentoras de plataformas digitais devem assumir no combate de discursos enganosos, conspiratórios ou violentos empregados com o fim de abolirem ou deslegitimar o Estado Democrático de Direito, os direitos políticos de cidadãos e cidadãs e/ou processos eleitorais e cívicos.

Para respondermos a esse questionamento, mapeamos, com a ajuda do observatório achearegra, as políticas de moderação de conteúdo do Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, WhatsApp, TikTok, Kwai, LinkedIn e Telegram relacionadas as eleições e/ou integridade eleitoral. O que observamos de semelhante entre as plataformas é que, apesar da existência de uma ou outra categoria específica para processos cívicos e, em especial, para as eleições, a maioria das publicações que podem representar ameaças ao debate democrático ou aos direitos humanos acabam sendo regulados por moderadores de conteúdo através de parâmetros mínimos estabelecidos pelas plataformas para balizar outros comportamentos, como violência, discurso de ódio e bullying. Em outras palavras, se há uma publicação que incita violência a uma instituição democrática, só será possível removê-la caso o moderador entenda que ela se enquadra dentro de regras mais genéricas de ameaças ou incitação de violências.

Essas regras, mais gerais, todavia, não apresentam todas as ferramentas necessárias para que os moderadores consigam eficientemente e de maneira transparente desempenhar a proteção contra comportamentos que podem causar danos a processos eleitorais ou ao Estado Democrático de Direito. Assim, considerando que as plataformas digitais são importantes na dinâmica comunicacional sobre política, sendo capazes de serem mais do que apenas ambientes para grupos e indivíduos expressarem-se, entendemos que há espaço para exigir o estabelecimento de políticas e regras específicas sobre processos cívicos e democráticos.  

O que é fundamental?

Reconhecendo, porém, que é implausível cristalizar cada aspecto sobre essas políticas, buscamos pontuar, em nosso policy paper, aqueles que consideramos essenciais para a criação de um ambiente permanentemente propício ao debate político íntegro, protegendo os direitos e a dignidade de todos os usuários.  Com base em estudos sobre o contexto eleitoral brasileiro das últimas eleições, bem como em pesquisas anteriores conduzidas pelo InternetLab, sistematizamos quatro desafios principais a serem lidados pelas plataformas:  (i) alegação de fraudes e questionamentos quanto à integridade eleitoral; (ii) anúncios eleitorais; (iii) envolvimento de perfis de figuras públicas no debate eleitoral e (iv) insurreição e rompimento com o processo democrático. 

Ressalta-se, ainda, que, ao considerarmos as diferentes arquiteturas e modelos de negócio de cada plataforma e a volatilidade da intersecção entre eleições e internet, nos propusemos a discutir não os conteúdos em si, mas o sistema no qual os conteúdos se produzem. A ideia, portanto, é pensar na elaboração de regras internas específicas que sustentam a democracia, mas, ao mesmo tempo, garantam a pluralidade de discursos, não ameaçando o direito à liberdade de expressão.

Nessa linha, destacamos que, para além da elaboração e estabelecimento de políticas, é imprescindível a presença de outro valor fundamental: a transparência. Para garantir a integridade do debate público e o respeito ao pluralismo político, não basta apenas a elaboração de regras e políticas. É necessário, também, o fornecimento de informações claras sobre como são tomadas as decisões relacionadas à moderação de conteúdo político-eleitoral, de modo que os usuários possam compreender como as plataformas estão moldando o debate político e para que tenham autonomia e proteção. 

Recomendações 

A partir da identificação desses desafios, buscamos pontuar parâmetros para um compromisso político forte das plataformas com a democracia, de maneira a possivelmente inspirar o debate multissetorial sobre o tema. São eles: 

  1. Estabelecimento de um efetivo compromisso pelas plataformas de respeito à integridade cívica e eleitoral e a criação de um grupo de trabalho da indústria que possa coordenar parâmetros mínimos de proteção da integridade eleitoral;
  2. Elaboração de políticas de conteúdo completas, precisas, funcionais e que abordem os quatro desafios mencionados anteriormente:
    1. Para alegações infundadas de fraude, é ideal a criação de uma política guarda-chuva que cubra discursos diretos e indiretos sobre o assunto e que seja capaz de proteger tanto a proteção mais ampla dos processos democráticos quanto períodos eleitorais específicos;
    2. Na questão de anúncios eleitorais, é fundamental a criação de regras que impeçam a circulação de conteúdos desinformativos e que questionem a integridade eleitoral; além de uma biblioteca de anúncios que permita rastreá-los;
    3. Uma moderação mais ágil e precisa sobre conteúdos que violam políticas sobre integridade eleitoral e cívica em perfis de candidatas(os) e figuras públicas em geral, com especial atenção, porém, para perfis dessa categoria pertencentes a grupos historicamente marginalizados, considerando a probabilidade de violência e discurso de ódio direcionado a essas pessoas;
    4. Proibição de conteúdos que contenham declarações de incitação ou defesa de violência contra a ordem democrática ou contra a transmissão pacífica de poder, tendo em vista o contexto e risco de dano que a declaração carrega.
  3. Comprometimento com a transparência pelas plataformas, de modo que haja um sistema capaz de monitorar a implementação e a efetividade desse compromisso assumido pelas plataformas por meio de métricas claras e definidas e pela apresentação acessível e organizada das políticas implementadas.

O relatório pode ser lido em português

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