Foto de Cartazes em um protesto.

Uma nova lei de retenção de dados para a Alemanha – dessa vez constitucional?

Opinião Privacidade e Vigilância 23.04.2015 por Francisco Brito Cruz

Por Jacqueline Abreu*

Os Ministros da Justiça Haiko Mass (SPD) e do Interior Thomas de Maizière (CDU) anunciaram na última quarta-feira (15.04.15) o plano de reintroduzir na Alemanha a obrigação de guarda de metadados gerados na utilização de serviços de telecomunicações. O projeto pode ser visto como esforço legislativo de adequar as regras da retenção aos parâmetros estabelecidos pela Corte Europeia de Justiça e pelo Tribunal Constitucional Alemão que declararam inválidas, respectivamente, a Diretiva de Retenção de Dados de 2006 e a lei de transposição alemã (que implementou a Diretiva europeia no direito nacional), em razão da violação a direitos fundamentais. Se a primeira tentativa de encontrar o equilíbrio constitucional entre liberdade e segurança quanto à retenção de dados foi rejeitada pelos tribunais, eis aí uma nova tentativa.

Foto de cartazes brancos com letras pretas, em um protesto. Os cartazes estão em alemão. No primeiro plano, há um pequeno cartaz com ilustração do Barack Obama, com usando um fone, com os dizeres: "yes, we scan!".
Alemães protestam por privacidade e contra o escândalo de vigilância em massa delatado pelo ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, Edward Snowden. Imagem: Digitale Gesellschaft / Licença: CC-BY SA 2.0.

Quando a retenção de dados foi primeiramente introduzida na Alemanha à luz da Diretiva em 2008, previa-se que provedores de serviços de telecomunicações deveriam guardar os dados gerados pela comunicação de usuários por seis meses, a fim de assegurar a sua disponibilidade caso autoridades de segurança viessem a necessitá-los no exercício de suas tarefas de repressão e prevenção de crimes. Os prestadores de serviços de telefonia (fixa, móvel e via internet) estavam assim obrigados a guardar o registro de números envolvidos na ligação, data e hora de seu início e fim, além da localização, no caso de celular e dos IPs, no caso de telefonia por internet; os provedores de acesso à internet, endereço de IP, data, hora e duração da conexão; os provedores de serviços de E-Mail, e-mails envolvidos na comunicação, assunto, data e hora de envio e recebimento.

A lei não demorou a ser judicialmente contestada e foi declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional Alemão ainda em março de 2010. Notável na decisão, e especialmente explicativo para o cenário político atual em que se pretende apresentar uma segunda versão da medida, foi o fato de o Tribunal não declarar a retenção de dados em si inconstitucional. Apenas a forma que ela tomou na lei de transposição alemã estaria em desacordo com os direitos constitucionais ao sigilo das comunicações e à autodeterminação informacional. Diante da abrangência da medida, da potencialidade de se construir perfis de personalidade e movimentação a partir dos metadados, da geração da sensação de ser vigiado e do aumento dos riscos de acesso ilegal aos dados, preocupações ligadas à liberdade, a retenção de dados só poderia ser justificada por interesses de segurança se preenchidos requisitos que garantissem sua proporcionalidade.

Nesse sentido, o Tribunal considerou que seria imprescindível para uma retenção de dados “conforme a Constituição” a previsão de normas precisas e rígidas de acesso, uso e segurança dos dados guardados e respectivas sanções no caso de violações, além de direitos de notificação do usuário e regras de transparência sobre uso de dados, entre outras. Somente atendendo a tais parâmetros o legislador poderia reintroduzir uma lei constitucional de retenção de dados. Como a própria Diretiva de Retenção de Dados já estava sendo contestada em nível europeu à época, o momento político para tal tentativa não era adequado. Quando em abril de 2014 a Corte de Justiça da UE declarou a Diretiva inválida em termos bastante semelhantes, também não impossibilitando a retenção de dados em princípio, os políticos alemães favoráveis à medida voltaram a se mexer em busca de uma conciliação que permitisse a sua reintrodução.

Nas guidelines anunciadas pelo governo alemão essa semana, o esforço de encontrar o equilíbrio entre os interesses de segurança e a proteção a direitos fundamentais à luz das preocupações reveladas e dos parâmetros fixados pelo Tribunal (e pela Corte) é notável. Quanto ao tempo, a retenção passaria dos seis meses a dez semanas, reduzindo-se a quatro no caso de dados de localização na telefonia móvel; no que se refere à categoria de dados abrangidos, os registros de comunicação por E-Mail seriam excluídos. A proposta ainda se compromete a restringir o acesso a dados para casos de crimes graves expressamente listados, garantir a notificação do acesso ao usuário e contar com padrões rígidos de segurança. O acesso a dados guardados passaria a depender sempre de ordem judicial e seria proibido quando relacionado a pessoas que atuam sob sigilo profissional.

Ainda assim, a nova proposta encontra bastante resistência. A oposição mesmo aos novos e “melhores” termos da proposta chama atenção para um problema-chave da retenção de dados, que permanece no novo projeto e ameaça essa nova tentativa de encontrar os limites constitucionais da restrição da liberdade em nome da segurança: a obrigação de guarda de registros de comunicações ainda é fundamentalmente desconectada de comportamento suspeito ou perigo concreto, mesmo que o acesso aos dados guardados não o seja. Ainda há muitos alemães que, antes de se contentarem com a guarda segura e o uso restrito dos registros guardados (e de confiarem nisso), não admitem ser tratados como potenciais criminosos. Essa questão deve ser levada a sério no debate público sobre a nova proposta e talvez leve a futura lei novamente ao Tribunal.

* Jacqueline Abreu é formada em Direito pela Universidade de São Paulo e faz atualmente mestrado na Ludwig-Maximilians-Üniversität em Munique. Jacqueline colaborou com este artigo para o blog do site InternetLab.

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