Uma nova lei de retenção de dados para a Alemanha – dessa vez constitucional?
Por Jacqueline Abreu*
Os Ministros da Justiça Haiko Mass (SPD) e do Interior Thomas de Maizière (CDU) anunciaram na última quarta-feira (15.04.15) o plano de reintroduzir na Alemanha a obrigação de guarda de metadados gerados na utilização de serviços de telecomunicações. O projeto pode ser visto como esforço legislativo de adequar as regras da retenção aos parâmetros estabelecidos pela Corte Europeia de Justiça e pelo Tribunal Constitucional Alemão que declararam inválidas, respectivamente, a Diretiva de Retenção de Dados de 2006 e a lei de transposição alemã (que implementou a Diretiva europeia no direito nacional), em razão da violação a direitos fundamentais. Se a primeira tentativa de encontrar o equilíbrio constitucional entre liberdade e segurança quanto à retenção de dados foi rejeitada pelos tribunais, eis aí uma nova tentativa.
Quando a retenção de dados foi primeiramente introduzida na Alemanha à luz da Diretiva em 2008, previa-se que provedores de serviços de telecomunicações deveriam guardar os dados gerados pela comunicação de usuários por seis meses, a fim de assegurar a sua disponibilidade caso autoridades de segurança viessem a necessitá-los no exercício de suas tarefas de repressão e prevenção de crimes. Os prestadores de serviços de telefonia (fixa, móvel e via internet) estavam assim obrigados a guardar o registro de números envolvidos na ligação, data e hora de seu início e fim, além da localização, no caso de celular e dos IPs, no caso de telefonia por internet; os provedores de acesso à internet, endereço de IP, data, hora e duração da conexão; os provedores de serviços de E-Mail, e-mails envolvidos na comunicação, assunto, data e hora de envio e recebimento.
A lei não demorou a ser judicialmente contestada e foi declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional Alemão ainda em março de 2010. Notável na decisão, e especialmente explicativo para o cenário político atual em que se pretende apresentar uma segunda versão da medida, foi o fato de o Tribunal não declarar a retenção de dados em si inconstitucional. Apenas a forma que ela tomou na lei de transposição alemã estaria em desacordo com os direitos constitucionais ao sigilo das comunicações e à autodeterminação informacional. Diante da abrangência da medida, da potencialidade de se construir perfis de personalidade e movimentação a partir dos metadados, da geração da sensação de ser vigiado e do aumento dos riscos de acesso ilegal aos dados, preocupações ligadas à liberdade, a retenção de dados só poderia ser justificada por interesses de segurança se preenchidos requisitos que garantissem sua proporcionalidade.
Nesse sentido, o Tribunal considerou que seria imprescindível para uma retenção de dados “conforme a Constituição” a previsão de normas precisas e rígidas de acesso, uso e segurança dos dados guardados e respectivas sanções no caso de violações, além de direitos de notificação do usuário e regras de transparência sobre uso de dados, entre outras. Somente atendendo a tais parâmetros o legislador poderia reintroduzir uma lei constitucional de retenção de dados. Como a própria Diretiva de Retenção de Dados já estava sendo contestada em nível europeu à época, o momento político para tal tentativa não era adequado. Quando em abril de 2014 a Corte de Justiça da UE declarou a Diretiva inválida em termos bastante semelhantes, também não impossibilitando a retenção de dados em princípio, os políticos alemães favoráveis à medida voltaram a se mexer em busca de uma conciliação que permitisse a sua reintrodução.
Nas guidelines anunciadas pelo governo alemão essa semana, o esforço de encontrar o equilíbrio entre os interesses de segurança e a proteção a direitos fundamentais à luz das preocupações reveladas e dos parâmetros fixados pelo Tribunal (e pela Corte) é notável. Quanto ao tempo, a retenção passaria dos seis meses a dez semanas, reduzindo-se a quatro no caso de dados de localização na telefonia móvel; no que se refere à categoria de dados abrangidos, os registros de comunicação por E-Mail seriam excluídos. A proposta ainda se compromete a restringir o acesso a dados para casos de crimes graves expressamente listados, garantir a notificação do acesso ao usuário e contar com padrões rígidos de segurança. O acesso a dados guardados passaria a depender sempre de ordem judicial e seria proibido quando relacionado a pessoas que atuam sob sigilo profissional.
Ainda assim, a nova proposta encontra bastante resistência. A oposição mesmo aos novos e “melhores” termos da proposta chama atenção para um problema-chave da retenção de dados, que permanece no novo projeto e ameaça essa nova tentativa de encontrar os limites constitucionais da restrição da liberdade em nome da segurança: a obrigação de guarda de registros de comunicações ainda é fundamentalmente desconectada de comportamento suspeito ou perigo concreto, mesmo que o acesso aos dados guardados não o seja. Ainda há muitos alemães que, antes de se contentarem com a guarda segura e o uso restrito dos registros guardados (e de confiarem nisso), não admitem ser tratados como potenciais criminosos. Essa questão deve ser levada a sério no debate público sobre a nova proposta e talvez leve a futura lei novamente ao Tribunal.
* Jacqueline Abreu é formada em Direito pela Universidade de São Paulo e faz atualmente mestrado na Ludwig-Maximilians-Üniversität em Munique. Jacqueline colaborou com este artigo para o blog do site InternetLab.