Ataques racistas à divulgação de pesquisa: nosso posicionamento

Opinião 27.08.2018 por Francisco Brito Cruz

A atividade de pesquisa, quando foca em temas de direitos, acessa assuntos que dividem ou que mexem em privilégios muito arraigados. Como centro de pesquisa, tivemos a lamentável experiência de ver uma pesquisa, uma população estudada e uma pesquisadora serem alvo de ataques racistas e de preconceito de classe, na última sexta-feira, dia 24 de agosto.

No fim de junho, divulgamos os resultados de uma extensa pesquisa quantitativa sobre o uso de tecnologias de informação e comunicação por parte de trabalhadoras domésticas na cidade de São Paulo. A pesquisa foi coordenada por nós, e realizada em parceria com a Rede Conhecimento Social e a Consult Pesquisa de Mercado. Trabalhadoras domésticas constituem um segmento que concentra uma série de diferentes marcadores sociais de grupos subalternizados, como gênero, raça e classe – são, em sua grande maioria, mulheres negras da periferia. A pesquisa revelou informações sobre como essas mulheres se apropriam da tecnologia em seu dia a dia, fornecendo subsídios para a compreensão da relação entre desigualdades e o uso da internet no Brasil.

A Coordenadora da nossa área de Desigualdades e Identidades deu uma entrevista a uma editoria de um grande portal de internet sobre a pesquisa. Na divulgação da entrevista e no Twitter, o portal deu destaque ao dado de que 48% das empregadas domésticas entrevistadas não têm a senha do wi-fi da casa onde trabalham, e à foto da pesquisadora do InternetLab, que é negra. O tuíte em questão recebeu mais de mil respostas, de opiniões sobre a “desimportância” dos dados a manifestações de racismo e classismo tanto em relação a trabalhadoras domésticas quanto à nossa pesquisadora. Foram diferentes camadas de comentários agressivos e depreciativos, muitos dos quais atacavam a reportagem sobre trabalho doméstico por ter sido ilustrada com uma foto de uma mulher negra, ignorando que a mulher negra em questão era a pesquisadora autora do estudo.

Não reproduziremos as ofensas que lá foram colocadas, para evitar dar mais visibilidade a agressões que sabemos que causam dor em quem atingem. A repercussão de parte das ofensas em forma de “piada” ou do riso (o que inclusive ocorreu dentro de nossa própria equipe em um primeiro momento) é ainda mais cruel.

A cobertura dada à pesquisa teve algum papel na eclosão dessas ofensas. Se a visibilidade para temas que tocam em desigualdades raciais e sociais é importante, o compromisso com temas sensíveis exige muito mais do que sua divulgação, mas também muita atenção a cada detalhe: chamada, ilustração, apresentação do tema etc. Compreendemos que o racismo faz parte das nossas relações sociais e está absolutamente arraigado no comportamento da sociedade brasileira. Se a desigualdade já é um tema sensível em si, a sua visibilização não pode ser confusa ou descontextualizada, sob pena de ser reapropriada por quem teima em ignorá-la.

Nas palavras dessa audiência, o racismo e preconceito de classe se manifestaram com desfaçatez, e o retrato da difícil relação racializada do trabalho doméstico presente no dia-a-dia de milhões de brasileiros foi tratado como uma espécie de “mimimi”. Isso nos revolta e agride.

 

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Do que ocorreu ficam duas lições práticas. A primeira é de reforçar o cuidado no tratamento de temas de desigualdades, responsabilizando-nos não só pelo material que divulgamos como por conscientizar aqueles que dele se apropriam para contar histórias. A segunda é que a própria atividade de pesquisa, quando comprometida com o estudo de estruturas sociais e raciais desiguais, pode acabar trazendo à tona retratos intestinos e indigestos da sociedade brasileira. Mais pesquisa deve iluminar cantos sombrios e empoeirados das nossas relações sociais. Mesmo que o cuidado deva ser redobrado, desse compromisso não abriremos mão.

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