InternetLab envia contribuição à ANPD sobre tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes
A principal recomendação é de que sejam limitadas as possibilidades de tratamento de dados de crianças e adolescentes, priorizando o melhor interesse dessas populações durante todo o processo de concepção de um projeto, serviço ou produto.
Um dos pontos principais da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é a hipótese legal que autoriza uma organização a coletar e utilizar um dado pessoal. Sem que haja essa hipótese – definida pela lei como base legal -, o tratamento não é permitido.
Dados de crianças e adolescentes, porém, merecem atenção especial – dada a vulnerabilidade e suscetibilidade desses grupos a práticas abusivas. Em razão dessa preocupação, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tornou pública a tomada de subsídios sobre hipóteses de tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, para a qual o InternetLab enviou uma contribuição.
Em estudo sobre o tema, a ANPD afirma que haveria três interpretações principais em relação ao artigo 14 da LGPD, que orienta as práticas de tratamento de dados de crianças e adolescentes. A primeira defende que o consentimento dos pais ou responsável legal seria a única hipótese legal de tratamento de dados pessoais de crianças. A segunda argumenta que todas as bases legais previstas nos arts. 7° e 11 da LGPD seriam aplicáveis. A terceira e última interpretação entende que os dados de crianças e adolescentes seriam equiparáveis a dados sensíveis, implicando a aplicação das bases legais previstas no art. 11 da LGPD, mais restritas que aquelas que se aplicam a todos os tipos de dados.
É importante sublinhar que a aplicação apenas do consentimento dos pais ou do responsável legal pode ser bastante limitadora no tocante ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, especialmente, quando considerado o âmbito de efetivação de políticas públicas. Políticas de proteção social, como o Auxílio Brasil, muitas vezes dependem de dados de crianças e adolescentes para sua plena efetivação. Nesses casos, não seria possível falar em um consentimento livre e informado, como previsto pela legislação brasileira.
Em contrapartida, o artigo 7° da LGPD parece trazer hipóteses legais de tratamento muito amplas para crianças e adolescentes, como o legítimo interesse e a proteção ao crédito, que poderiam abrir margem para práticas abusivas.
Por fim, então, coloca-se a proposta de equiparação, no âmbito da aplicação das bases legais, dos dados de crianças e adolescentes aos dados sensíveis. Neste caso, por mais que seja uma interpretação mais adequada à proteção do melhor interesse das crianças e de adolescentes, também encontram-se problemas. Ainda que as hipóteses de tratamento sejam mais restritivas para os dados sensíveis, há ainda situações que poderiam colocar em risco os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Para além disso, ao inserir os dados de crianças e adolescentes dentro do rol de dados sensíveis, poder-se-ia lidar com um risco de excluir a possibilidade de uma proteção “hipersensível” nos casos em que se está diante de dados de crianças e adolescentes e que também são enquadrados como sensíveis.
Diante desse cenário, propusemos em nossa contribuição uma conciliação entre a proteção trazida aos dados sensíveis pelo artigo 11 da LGPD, o melhor interesse de crianças e adolescentes e a consideração dos direitos de ambos os grupos desde a concepção do projeto, produto ou serviço.
O que se argumenta é que o tratamento de dados de crianças e adolescentes tenha como referência, em primeiro lugar, as hipóteses estabelecidas no artigo 11 da LGPD, dado que são mais restritivas que aquelas previstas no artigo 7° e estariam em melhor sintonia com o interesse da criança. Ademais, destaca-se que o conceito de dados sensíveis, para além de possuir o objetivo de evitar a discriminação, visa a efetivação de direitos fundamentais dos titulares de dados. Sendo assim, a assimilação dessa concepção permite uma abordagem mais protetiva na interpretação do tratamento de dados de crianças e adolescentes.
Todavia, como apenas a equiparação não é suficiente, o segundo passo para uma interpretação mais adequada do tratamento de dados de crianças e adolescentes é aliar o conceito de dados sensíveis com o princípio do melhor interesse de crianças e adolescentes e a consideração prioritária dos direitos de crianças e adolescentes desde a concepção do projeto, produto ou serviço (por design). Nesse sentido, defende-se que o melhor interesse de ambos os grupos esteja sempre presente para equacionar qualquer aplicação de base legal na qual este princípio entre em conflito com o direito à privacidade.
Por fim, o último elemento – a abordagem do direito das crianças e adolescentes por design – se insere em uma perspectiva mais ampla, na qual discussão sobre o tratamento não se limite apenas ao tópico das possíveis bases legais, mas também englobe a mentalidade de que esses direitos devem ser protegidos desde a concepção de qualquer projeto, serviço ou produto ligado à tecnologia. Para a construção desse último tópico, o InternetLab utilizou-se de um material desenvolvido em conjunto com o Instituto Alana sobre o direito de crianças e de adolescentes à privacidade.
No material, além do necessário reconhecimento de que crianças e adolescentes não são um grupo homogêneo, isto é, que ao pensar no melhor interesse de crianças e adolescentes, é preciso considerar também as desigualdades que marcam e constituem esses grupos, há a sugestão de implementação de diversas práticas para os atores que operam no ambiente digital e que foram ressaltadas, novamente, na contribuição à ANPD. São algumas: (i) configurações padrão de alta privacidade; (ii) espaços digitais livres de exploração comercial; (iii) integrar as disposições da Convenção sobre os Direitos da Criança em todas as políticas corporativas e processos de gestão apropriados; (iv) adoção de avaliações de impacto da proteção de dados de crianças; e (v) transparência, acessibilidade e legibilidade dos termos de uso e políticas de privacidade. A adoção de tais medidas profiláticas possibilita uma interpretação mais robusta do tratamento de dados de crianças e adolescentes.