Ilustração com duas mulheres negras, uma criança e outra já adulta, que se conectam pelas tranças e na natureza, em referência à ancestralidade e aos saberes de comunidades tradicionais, sobretudo ao conhecimento. A arte foi feita por Stephanie Pollo.

Conhecimento livre e as barreiras encontradas por intelectuais negras(os) e indígenas

Evento organizado pelo InternetLab reflete sobre desafios que intelectuais pertencentes a grupos historicamente marginalizados enfrentam ao fazer uso da internet para circular e produzir conhecimento .

Notícias Desigualdades e Identidades 31.03.2022 por Fernanda K. Martins e Stephanie Lima

Em 23 de fevereiro de 2022, ano em que a Lei de Cotas completa 10 anos, demos início à escuta de importantes intelectuais e ativistas para entender quais as principais barreiras encontradas na produção de conhecimento – online e offline – de pessoas negras e indígenas. A atividade faz parte do projeto Equidade no Conhecimento, fellowship conduzida pelo InternetLab em parceria com o Wikimedia Knowledge Equity Fund (Fundo de Equidade no Conhecimento da Wikimedia).

O primeiro encontro foi composto por um conjunto de atividades planejadas para a pesquisa. Nele, provocamos os(as) convidados(as) a refletir sobre algumas questões principais: 

  • Após 10 anos da aprovação da Lei de Cotas, quais as principais dificuldades e transformações na produção e circulação do conhecimento de pessoas negras e indígenas?
  • Como a internet tem se colocado (ou não) como parte desse processo?
  • Como as transformações na produção e circulação do conhecimento de pessoas negras e indígenas se refletem no chamado conhecimento livre?
  • Como o conhecimento livre contribui (ou pode contribuir)  na transformação dessas dificuldades?

Uma das transformações apontadas pela professora Angela Figueiredo, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), foi a de que, após a Lei de Cotas, percebe-se que a juventude negra formada nas universidades está modificando a percepção da discussão racial no país; o que gera um aumento do letramento racial e da sensibilização quanto ao que é considerado violento ou desigual. Segundo Figueiredo, isso acontece, também, por meio da internet.

A professora Verônica Toste, em uma perspectiva semelhante, pontuou a importância das demandas materais e de permanência dos estudantes negros(as) e ressaltou o aumento na produção de intelectuais negros(as) no contexto online. Ainda pontuou: “a internet pode abrir algumas oportunidades de conexão entre as pessoas e servir de base para algumas iniciativas inovadoras. Entretanto, ressalto como as universidades, com seus recursos e possibilidade de encontros físicos, têm sido fundamentais mesmo para quem atua na internet. Além disso, as universidades, com bolsas, grupos de pesquisa, bibliotecas, recursos, são espaços fundamentais para a pesquisa e produção de conhecimento de pessoas negras”.

Durante o diálogo, surgiu a necessidade de pensarmos também nas dificuldades de publicação em revistas acadêmicas e editoras tradicionais. Talita Lazarin, assessora da Organização Indígena Comitê Interaldeias, frisou que, no caso de comunidades indígenas, nós temos que considerar ainda o acesso à internet.

A falta de acesso se desdobra, por exemplo, em dificuldades para que indígenas consigam fazer provas de vestibulares. Juliana Jodas, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sublinhou o quanto, independentemente da internet, as provas de ingresso nas universidades continuam sendo inefetivas e pouco sensíveis às singularidades que envolvem as populações indígenas.

A universidade foi, desse modo, compreendida por muitas(os) professoras(es), ativistas e pós-graduandas(os) que estavam presentes no evento como um espaço que historicamente não tem sido capaz de acolher e compreender formas outras de ser aluna(o), de entender como sujeitos outros produzem conhecimento.

Diante disso, parte da conversa girou em torno do seguinte questionamento: como multiplicar as diversas formas de pensar, as diferentes epistemologias e as múltiplas cosmovisões dentro das universidades? Mais que isso, quando as universidades, em geral, deixarão de tratar as comunidades indígenas e as pessoas negras de forma homogênea?

Nas disputas que acontecem nos espaços universitários mais tradicionais, incluindo aqui universidades, revistas acadêmicas, editoras, eventos etc., a circulação e produção de conhecimento online pode ser compreendida como uma das brechas em que muitas(os) estudantes negras(os) puderam ter contato com teorias e produções de conhecimentos de intelectuais que vinham de lugares sociais semelhantes aos seus. A professora Regina Facchini, Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu-UNICAMP, por exemplo, pontuou que a disseminação do uso da categoria “interseccionalidade” para além dos espaços do movimento feminista negro foi possível, principalmente, por causa da internet.

Facchini frisou que muitos dos debates importantes que antes ficavam concentrados em movimentos sociais, com a atuação de estudantes negros(as) e indígenas nas redes sociais, passaram a atingir outros grupos sociais. Além disso, a própria circulação de textos traduzidos para o português – como é o caso de muitas obras de autoras negras estadunidenses – são exemplos importantes de como novas formas de olhar para problemas sociais ganharam parte da sociedade brasileira.

É importante salientar, entretanto, que muito desse conhecimento circula e é produzido em plataformas digitais proprietárias. Nesse sentido, espaços como a Wikipedia, ou seja, que frisam o conhecimento livre e aberto, ainda são pouco apropriados por intelectuais pertencentes a grupos historicamente marginalizados.

O que causaria o distanciamento de populações historicamente marginalizadas de pautas relacionadas ao conhecimento livre? O que faz com que esses grupos façam mais uso de outras plataformas? Para o professor Paulo Rená, ativista no Aqualtune Lab: Direito, Raça e Tecnologiagia, e Leonardo Foletto – Pesquisador e pós-doutorando no LabCidade, Faculdade Arquitetura e Urbanismo (FAU), Universidade de São Paulo (USP) – parte desse distanciamento pode ser compreendido quando pensamos que a internet não é necessariamente uma quebra radical daquilo que acontece em espaços mais tradicionais de conhecimento.

Assim como na academia e nos espaços universitários, as plataformas de compartilhamento de conhecimento na internet requerem processos de transformação e apropriação por meio de intelectuais negros(as) e indígenas.

É preciso lembrar que os sujeitos que formatam códigos e linguagens são perpassados por marcadores de classe social, raça, etnia, território, gênero e sexualidade, etc. Isso significa que muitas vezes nem mesmo a pauta de conhecimento livre é suficiente para aproximá-los(las). É precisoque passemos a identificar outras formas de incorporar e ser incorporados por outras formas de saber. Afinal, quais mudanças seriam necessárias para que intelectuais negras(os) e indígenas se sentissem confortáveis o suficiente para ocupar esses espaços de forma significativa?

Ainda que os debates sobre ações afirmativas, as barreiras encontradas por intelectuais negras(os) e indígenas em suas trajetórias acadêmicas e o uso da internet para produção e circulação de conhecimento de forma livre aparentassem, a princípio, ser temas que não se alinhavam de forma automática, entendemos que esse encontro foi para a nossa pesquisa um pontapé inicial para que essas pautas se somem substancialmente. Como bem lembrado durante o encontro, jovens negras(os) e indígenas já fazem uso de outras formas de transmitir o conhecimento online e fazer divulgação científica, como no caso das lives que preencheram os dois primeiros anos da pandemia.

Dessa forma, entre as perguntas que pretendemos responder no decorrer da pesquisa e ficaram bastante evidentes em nosso primeiro encontro, estão: quais os entraves para que o conceito de conhecimento livre se torne ainda mais popular, acessível e apropriado para diferentes grupos sociais? Como tornar plataformas de compartilhamento de conhecimento livre, como a Wikipedia, ambientes mais plurais? E, ainda, como o conhecimento produzido na academia, com as lógicas proprietárias de autoria e consumo de conteúdo, pode ganhar ares de liberdade, adentrando espaços pouco reconhecidos pelas universidades, mas que auxiliam em sua popularização?

O tema está longe de se esgotar e permaneceremos, assim, incubidas a pesquisar e compartilhar conhecimento construindo pontes entre essas áreas. Acompanhe os resultados em nossos canais de divulgação.

*A ilustração desse artigo foi desenvolvida por Stephanie Pollo.


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