Governo quer rediscutir o Comitê Gestor da Internet: entenda
No Brasil, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) é o órgão responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no país. No dia 8 de agosto deste ano, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) iniciou uma consulta pública para rediscutir a composição, as competências, o funcionamento e o processo de eleição do Comitê. Analisamos neste texto o que é, qual a importância, qual a estrutura e como funciona o CGI.br, além de apresentar as posições, as preocupações e os argumentos que estão em jogo neste processo de revisão iniciado pela consulta pública.
O que faz o Comitê Gestor da Internet?
O história do CGI.br tem íntima relação com a história de implantação e disseminação do uso de Internet no Brasil. Na década de 90, o uso da rede era popularizado entre acadêmicos, mas com tímida adesão para além destes círculos. Em 1994, os ministérios das Comunicações e da Ciência e Tecnologia lançaram um projeto visando expandir o uso da rede no país o que incluiu, no ano seguinte, a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil por meio da Portaria Interministerial nº 147.
O Comitê passou a desempenhar funções técnicas essenciais para o funcionamento da rede. Uma delas, por exemplo é de coordenar a atribuição de endereços IP (Internet Protocol) para provedores de conexão, protocolo necessário para oferecer a alguém uma conexão à Internet. O registro de nomes de domínios de páginas da Internet “.br” também ficou a cargo do CGI: domínios são os nomes que identificam facilmente um endereço ou um serviço, sem que seja necessária a memorização de uma sequência de números para encontrar os sites. No caso do Brasil, esses nomes de domínio terminam em “.br” e, ao longo do tempo, essa atividade se tornou paga, configurando hoje a maior fonte de receita do CGI.br.
O CGI.br também recebeu a função de emitir recomendações técnicas sobre quais os padrões e procedimentos que deveriam ser adotados nos serviços de Internet no país. Promoveu também estudos e recomendações sobre a segurança da Internet e propondo programas de pesquisa e desenvolvimento relacionados à rede. O histórico destes estudos é longo e rico: pesquisas apoiadas pelo CGI demonstram a vertiginosa evolução do acesso e do uso da Internet no país nos últimos 20 anos.
Quem faz parte do CGI.br e como ele toma decisões?
O Comitê, entre 1995 e 2003, era formado apenas por nove representantes apontados pelo governo. Em 2003, o Comitê passou por alterações, por meio do Decreto nº 4.829/2003.
Este decreto deu origem ao atual formato institucional do CGI.br, estabelecendo uma nova composição de conselheiros/as e como deveria ser realizado o processo eleitoral para a sua escolha. Na atual composição o Comitê é formado por:
9 representantes do setor governamental (um representante do Ministério da Ciência, Tecnologia e da Informação; da Defesa; das Comunicações; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; do Planejamento, Orçamento e Gestão; da Casa Civil; da Anatel; do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; e do Conselho Nacional de Secretários para assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação);
4 do setor empresarial (provedores de acesso e conteúdo; de infraestrutura; um representante da indústria e um das empresas usuárias de Internet);
4 do terceiro setor;
3 da comunidade científica e tecnológica (acadêmicos, técnicos e estudiosos da área);
1 representante de notório saber em assuntos de Internet (um especialista com amplo conhecimento de questões complexas da área).
Os membros do setor empresarial, do terceiro setor, e da comunidade científica, são eleitos para mandatos com duração de três anos e escolhidos a partir dos votos de um colégio eleitoral composto por entidades habilitadas de cada segmento. Somente entidades do terceiro setor podem votar em representantes do terceiro setor, por exemplo. Os representantes de governo e o representante de notório saber, por sua vez, são diretamente nomeados pelo Governo Federal.
O decreto também criou instituições subordinadas ao Comitê. Esse é o caso do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), órgão encarregado das funções administrativas e operacionais do CGI.br. Na atual estrutura, o NIC.br é o responsável por garantir e conservar a qualidade dos registros de domínios do “.br” e por realizar a arrecadação financeira dos mais de 3,4 milhões de domínios já registrados.
O Comitê não tem poder normativo e não é um órgão de governo: ele é um espaço multissetorial (ou seja, que reúne diferentes setores, mas nesse caso sem a predominância de nenhum) de debate, de criação de princípios e diretrizes e administração de recursos técnicos (como os nomes de domínio e os endereços IP). O Comitê participou ativamente do processo de elaboração do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), oferecendo as primeiras diretrizes para a criação da lei e estando presente em todo o seu processo de tramitação. Quando aprovada, a lei fortaleceu seu papel, definindo que o CGI.br deve ser ouvido em assuntos relacionados à neutralidade de rede e sobre requisitos técnicos à prestação adequada dos serviços e aplicações.
O modelo multissetorial do Comitê Gestor da Internet
Ao longo dos seus mais de 20 anos de existência, o CGI.br tornou-se referência, principalmente em virtude de seus processos e decisões multissetoriais, que colocam na mesma mesa representantes de diversos setores para discutirem diretrizes e estratégias para o desenvolvimento da Internet no Brasil.
Este formato inovador tornou-se referência pois considera que a arquitetura da Internet – global, descentralizada e construída a partir da contribuição de múltiplos atores – é complexa e que a sua governança pode ser incrementada a partir de múltiplas perspectivas. A chave estaria na consideração permanente dos pontos de vista de cada um dos setores, o que diferencia tal modelo de formatos clássicos de institucionalização das instituições e organizações internacionais. Em modelos mais tradicionais, por exemplo, o setor governamental concentraria o poder sobre o que poderia ser discutido e sobre as decisões e estratégias: não haveria espaço para pontos de vista que fugissem à lógica estatal e que abarcassem a complexidade de temas e atores próprios da arquitetura da Internet.
Com diferentes posições em jogo, o multissetorialismo está no centro de discussões sobre governança da Internet travadas em fóruns internacionais. Críticos deste modelo sinalizam que grupos mais fortes (governos autoritários ou um forte setor privado, por exemplo) podem utilizar tais espaços apenas como forma de legitimar processos pouco abertos ou transparentes (o que pode ser encontrado aqui e aqui). Para tais críticos a maior abertura à participação não significaria necessariamente que grupos consigam transformar os debates em influências efetivas nas decisões ou nas leis.
A consulta pública: governo quer rediscutir o Comitê
No dia 8 de agosto último, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) lançou uma consulta pública visando revisar o desenho institucional, as funções e as competências do CGI.br. O Ministério apresentou como argumento para a sua realização a necessidade de harmonizar a estrutura de governança da Internet aos novos processos de transformação digital. No documento-base da consulta destacou a importância das instâncias multissetoriais, do aprofundamento da transparência e participação, da adoção de medidas de transição entre a atual estrutura para eventuais novas regras e, por fim, da preservação do caráter multiparticipativo e democrático, com equilíbrio constante entre os setores representados.
Essa proposta de rediscussão do CGI.br vinda do MCTIC surpreendeu os membros do comitê e da comunidade que acompanha os temas de políticas de Internet. O momento político é turbulento e pautado por uma ousada e controversa agenda de reformas do governo em diversas frentes, o que contribui para levantar dúvidas. Quais serão os impactos dessa medida?
Reações sobre a consulta: polêmicas e receios
As intenções do Governo Federal com a consulta foram imediatamente questionadas por uma série de atores de diferentes setores. A Coalizão de Direitos na Rede, que congrega uma série de organizações da sociedade civil, e a Internet Society Brasil (ISOC), capítulo brasileiro de associação internacional para promoção da rede, defenderam que a consulta deveria ser cancelada imediatamente. Esses críticos afirmam que o processo foi conduzido de maneira unilateral pelo governo, uma vez que não houve um diálogo prévio no interior do próprio Comitê sobre o assunto. O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) também criticou, no plenário da Câmara, a abertura da consulta pública, afirmando que enviaria pedidos de esclarecimento ao MCTIC. Também surgiram defensores da ação do governo: Samuel Possebon, jornalista especializado no mercado de telecomunicações, publicou editoriais antes e depois do lançamento da consulta pública argumentando que “é hora de mexer” no CGI.br. Estes movimentos iniciais rascunham um conflito entre representantes do terceiro setor e da comunidade científica, de um lado, e dos provedores de conexão e do governo, de outro.
Em meio a tantas manifestações críticas, o Ministério publicou um texto tentando explicar o porquê de iniciar o processo, afirmando que a consulta foi lançada com intuito de “angariar insumos” para avaliar a necessidade de modernização do Comitê. No texto indicou que quer a manutenção da participação minoritária de representantes do governo em relação a outros setores.
Debates: o que já começou a ser discutido na consulta pública?
Na consulta pública aberta pelo MCTIC, a participação se dá por 5 “eixos”, que por sua vez se referem a pontos chave no funcionamento e composição do Comitê: a “competência” (possíveis atualizações e aprimoramento dela); a “composição” (discussão sobre setores atuais e se há necessidade de inclusão outros setores); a “eleição e mandato” (contribuições para aprimorar o processo); a “transparência” (aperfeiçoamento dos mecanismos de transparências); e “outros considerações”.
Com uma semana e meia de consulta aberta, as principais questões levantadas questionam os processos de reeleição dos membros do CGI.br e o peso do setor governamental nas decisões e nas nomeações. Os participantes também destacaram a necessidade da publicação dos balanços de gastos, relatórios mensais sobre as pautas da reunião e, até mesmo, a disponibilização de plataformas de consulta interativa direta e digital sobre as decisões e deliberações tomadas pelo CGI.br. Por fim, se falou sobre a necessidade de se alongar o prazo da consulta, que será de apenas 30 dias.
O papel do InternetLab: analisar o contexto e mapear as posições do debate
A falta de consenso em relação à forma e ao momento de proposição da consulta e preocupações quanto aos eventuais desdobramentos do processo fazem com que seja essencial acompanhá-lo de perto. Pensando nisso, o InternetLab, a exemplo do que fez com outras consultas públicas (como aqui e aqui), elaborará um relatório sobre a consulta pública, analisando o seu contexto político e mapeando os pontos em debate, os principais argumentos levantados e os agentes engajados.
Por Clarice Tambelli e Francisco Brito Cruz
Colaborou Beatriz Kira