Foto de uma manifestação exibindo placas e bandeiras carregadas pelos manifestantes com destaque em uma placa com o desenho de um personagem de anime apontando para um borboleta, fazendo referência ao meme is this a Pigeon? e o texto: Art. 13 is this a good idea?

A Diretiva sobre Direitos de Autor da União Europeia pode acabar com a internet?

Conjuntura Cultura e conhecimento 26.03.2019 por Mariana Valente

Por Mariana G. Valente*

Foto de uma manifestação exibindo placas e bandeiras carregadas pelos manifestantes com destaque em uma placa com o desenho de um personagem de anime apontando para um borboleta, fazendo referência ao meme is this a Pigeon?, e o texto: Art. 13 is this a good idea?
Manifestantes protestam na Alemanha contra o texto do artigo 13 da Diretiva. FOTO: Markus Spiske/CC BY 2.0

[Este texto foi originalmente publicado como artigo no site do Jota no dia 26.03.2019 e pode ser acessado neste link]

A Europa encontra-se em polvorosa com a aprovação da Diretiva sobre Direitos de Autor. No centro da polêmica está o artigo 13, que já foi batizado de “upload filter” (filtro de upload) e “meme ban” (banimento de memes) – atacado como “desastroso”, mas também defendido com a mesma disposição pelo outro lado. É por causa dele que, no fim de semana passado, na Europa, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas. Mais de 5 milhões de pessoas assinaram uma petição no Change.org contra a Diretiva – o maior abaixo-assinado da história da plataforma. Também semana passada, 74 representantes no Parlamento Europeu pediram que o art. 13 seja completamente eliminado da diretiva, e a Wikipédia de várias línguas diferentes promoveu um apagão, em protesto.

Não adiantou. Por 348 votos favoráveis contra 278 de oposição, o texto foi aprovado nesta terça (26) dando até dois anos para que os países-membros da União Europeia transponham a diretiva internamente, criando regras que cumpram com os requisitos estabelecidos.

E a gama de assuntos é relativamente ampla: a diretiva cria novas garantias para a fruição do domínio público, regras limitadas para utilização de obras protegidas por direito autoral na educação e em atividades de pesquisa com mineração de texto e de dados, e, dentre as medidas, duas grandes polêmicas: o artigo 11, que estabelece um direito às empresas de mídia por utilização de pedaços de notícias em plataformas de internet, e o tal artigo 13.

O relator do projeto no Parlamento, o alemão Axel Voss, veio acirrando o clima ao chamar a oposição de desinformada, desonesta e comprada pela indústria de internet. Nesta terça-feira, afirmou que a aprovação da diretiva “é um importante passo rumo a uma correção da situação que permitiu que algumas poucas empresas ganhassem grandes somas de dinheiro sem remunerar devidamente os milhares de criativos e jornalistas de cujos trabalhos eles dependem”.

O artigo 13 propõe uma grande mudança no regime de responsabilidade e nas obrigações das plataformas de internet que se baseiam em compartilhamento de conteúdo por terceiros (UGC, ou user-generated content). São serviços como YouTube, Facebook e Twitter, em que qualquer usuário pode subir um conteúdo, mas também serviços menores já existentes ou que possam vir a existir. Pela legislação vigente na Europa até o momento (Diretiva de Comércio Eletrônico), considera-se que os responsáveis por esses conteúdos são os próprios usuários que os postam, mas os serviços são obrigados a agir quando são informados concretamente de uma violação, o que ocorre normalmente mediante uma notificação do detentor de direitos. Isso significa que hoje eles não têm um dever de monitoramento ativo sobre a atividade de seus usuários.

O polêmico artigo da Diretiva sobre Direito de Autor muda esse balanço ao estabelecer que são as plataformas mesmas que realizam um ato de comunicação ao público quando seus usuários sobem conteúdos protegidos por direitos autorais, e que elas devem empreender “melhores esforços” para licenciar todos os conteúdos com os detentores de direitos, e remover conteúdos protegidos mediante notificação. Já os serviços mais populares (que têm mais de 5 milhões de visitantes por mês) devem empregar seus “melhores esforços” em fazer com que esses conteúdos não possam ser novamente disponibilizados uma vez que tenham sido removidos, e serviços maiores (plataformas com mais de 3 anos de funcionamento e receitas maiores que 10 milhões de euros por ano) devem implementar os tais filtros de upload, para bloquear conteúdos não licenciados no momento que o usuário quer subi-los.

Esses filtros são imaginados no modelo do Content ID, do YouTube – um sistema que realiza um “match” entre materiais que o usuário sobe na plataforma e um banco de dados de obras protegidas por direito autoral, e no qual o Google já investiu mais de 100 milhões de dólares. As regras não se aplicam a serviços de nuvem, enciclopédias sem fins lucrativos como a Wikipédia, ou repositórios científicos e educativos sem fins lucrativos.

Esse escalonamento dos diferentes tipos de plataformas foi sendo desenvolvido em resposta às críticas ao artigo 13 – no texto original, as regras aplicavam-se indistintamente a todos os serviços. Mas há bons motivos para sustentar que mesmo esse escalonamento não salva a proposta dos problemas que vêm sendo apontados.

Por que a discussão está tão acirrada?

Está claro que o objetivo dos apoiadores do artigo 13 é enquadrar as grandes empresas de internet para endereçar o que vem sendo chamado de “value gap” – o que essas empresas lucram com exploração de obras protegidas por direitos de autor, e não repassam aos detentores dos direitos. Essa é a narrativa central que está sendo mobilizada: trata-se de uma disputa entre grandes empresas de internet e grandes empresas de mídia e conteúdo. Diferentes órgãos europeus, e países individuais como notadamente a Alemanha, vêm já aprofundando o cerco contra as empresas de internet em diferentes temas, como discurso de ódio, desinformação, antitruste e proteção de dados pessoais.

Propostas envolvendo direitos autorais e a internet já ganharam o centro do debate público no passado – lembram-se do SOPA, PIPA e da HADOPI? –, mas o contexto é completamente diferente, e as propostas também. As discussões estão acontecendo em um momento em que surgiram no cenário intermediários de um tipo distinto, que oferecem exclusivamente catálogos licenciados, como o Spotify e o Netflix (não englobados pelo art. 13), e em que as indústrias de entretenimento investem seus esforços tanto em conseguir melhores acordos com essas empresas quanto em apontar que as plataformas baseadas em conteúdo gerado por usuários, como o YouTube, repassam menos recursos que as outras. Enquanto isso, grandes plataformas dessa natureza adquiriram dimensões colossais, e talvez tenham perdido parte da simpatia de que gozavam no debate público, com as recentes polêmicas em torno de desinformação, vazamento de dados pessoais, e práticas anticompetitivas.

Quando se insiste que o debate consiste somente nessa polarização, no entanto, não se reconhecem adequadamente nem as demandas de grupos não corporativos, que vêm expressando preocupações com direitos fundamentais dos cidadãos no uso da internet, nem de empresas menores, e tampouco dos criadores individuais.

Quando o art. 13 mira nas grandes plataformas, onde ele acerta?

Quando o art. 13 cria obrigações demasiado genéricas para os provedores, com a linguagem, por exemplo, de que eles têm de empreender “melhores esforços”, e quando os responsabiliza de saída pela violação de direito autoral por conteúdo de terceiros (“UGC”), isso pode gerar incentivos para que eles “errem para o lado da excessiva precaução”, removendo conteúdos potencialmente lícitos, como afirmou David Kaye, relator especial da ONU para liberdade de expressão. Assim como Kaye, uma coalizão de mais de 50 organizações de direitos humanos manifestou preocupação que as medidas teriam um grande impacto nos direitos fundamentais de se expressar, de informar e de ser informado.

Por mais que, no texto final, a obrigação expressa de filtrar previamente tenha recaído sobre as plataformas maiores, a atribuição direta de responsabilidade sobre os conteúdos de usuários faz com que, na impossibilidade de se licenciarem todos os materiais protegidos por direitos autorais, os filtros sejam a única forma que elas tenham de evitar responsabilidade. Vale lembrar que o art. 13 não se aplica só a música e audiovisual, que têm indústrias tradicionalmente mais organizadas em torno de catálogos, mas também a imagens, textos e qualquer outro bem protegido por direitos autorais, o que deixa tudo mais complexo.

Isso tem duas possíveis consequências: em primeiro lugar, um impacto nas possibilidades de sobrevivência de novos negócios e pequenas plataformas (e foi o que sustentaram 130 negócios de tecnologia europeus ao Parlamento, em carta no dia 19 de março). O segundo ponto é que sistemas automatizados de controle, como o Content ID do YouTube, produzem muitos “falsos positivos”, bloqueando ou de outras formas prejudicando ora vídeos que usam conteúdos que estão em domínio público, ora materiais que são protegidos por uma exceção prevista pela legislação.

Por exemplo: as legislações pelo mundo, e inclusive a brasileira, costumam permitir que obras alheias sejam utilizadas para fins de paródia; costuma ser permitida, também, a utilização de “pequenos trechos” de obras preexistentes em novas obras. Diferenciar entre um uso permitido e uma violação de direito autoral não é tarefa simples nem para advogados experientes; o Content ID tem sido particularmente ineficaz nesse aspecto, comumente bloqueando mais do que seria justo, afetando assim a liberdade de expressão e os direitos dos usuários.

A generalização desse tipo de sistema de controle, e para todo tipo de obra, pode levar à eliminação desses conteúdos permitidos de todas essas plataformas – e é por isso que vem sendo dito que o art. 13 é um risco para o meme, conteúdo que tipicamente usa obras anteriores com finalidade humorística, e que é uma forma bastante típica de expressão nas redes sociais. As sucessivas versões do texto foram incorporando essas preocupações, e a redação atual do art. 13 prevê que as plataformas têm de adotar medidas para que esses tipos de conteúdo preservados. No entanto, além de os filtros não serem capazes de fazer essa difícil diferenciação, não há sanção ou riscos concretos para as plataformas, para o caso de descumprimento, como há no caso da violação de direito autoral, o que é um problema do ponto de vista dos incentivos.

Há bons motivos para crer que, buscando um balanço entre diferentes direitos e interesses, o art. 13 acaba por afetar desproporcionalmente outros direitos, e cria obrigações que dificilmente poderão ser cumpridas senão pelas já grandes plataformas de internet. Além disso, na falta de uma discussão profunda sobre fluxos de recursos nos mercados digitais, aceita-se acriticamente que os interesses das indústrias que são detentoras de grandes catálogos, como gravadoras e editoras, é simétrico com o de criadores individuais, o que não é sempre verdade. Como já discuti em outro momento, no que diz respeito ao mercado de música digital, uma parte da razão de autores e intérpretes receberem pouco pela utilização de sua música no streaming tem a ver com as porcentagens estabelecidas em contratos com essas empresas. Além disso, para muitos criadores a maior disponibilidade de conteúdos online pode ser um benefício.

Que impacto a Diretiva pode ter sobre a internet, e sobre o Brasil em particular?

A Europa historicamente dá a frente em mudanças no direito autoral mundial, desde a Convenção de Berna de 1886. E isso não é só nos países da chamada tradição continental, que seguem o direito europeu, mas também se aplica aos Estados Unidos, que vêm de uma tradição jurídica bastante distinta. Uma outra preocupação é que, uma vez que sejam desenvolvidos, é bastante possível que esses filtros venham a ser aplicados em todas as jurisdições, como forma preventiva de evitar responsabilização.

No Brasil, não temos uma regra específica para responsabilização de intermediários por violação de direitos autorais por terceiros. A regra geral no Marco Civil da Internet consta do art. 19, e consiste em que provedores de aplicações de internet são responsabilizados somente quando, após uma ordem judicial, o intermediário em questão não remove o conteúdo, ou seja, a decisão sobre ilicitude do conteúdo é remetida previamente a um juiz. No entanto, quando se discutia essa regra, estabeleceu-se que ela não se aplicava para direito autoral, com a esperança de que o debate fosse refeito em momento oportuno. Naquele momento, discutia-se uma reforma do direito autoral que não vingou. Vai chegar o momento de discutirmos também aqui o que queremos, e seria ideal nesse momento termos precedentes influentes melhores que o que está em jogo com o artigo 13 da Diretiva europeia.

Se pode ser um pouco precipitado dizer que o artigo 13 vai matar a internet, pode-se afirmar com segurança que esse modelo prioriza os direitos autorais sobre outros direitos fundamentais, e que há grandes chances de o tiro sair pela culatra. Há boas razões para se preocupar com a regulação das grandes plataformas de internet, e, além de esse tipo de medida não atingir o coração do problema, há outras disponíveis. Não se trata somente de uma disputa entre grandes empresas: é uma aventura arriscada para o conhecimento, a diversidade online e a expressão, e deveríamos estar atentos também no Brasil.

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Mariana G. Valente é diretora do InternetLab, doutora em direito pela USP, coordenadora do Creative Commons Brasil.

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