Black Mirror: “San Junipero” (S03 E04), avatares e sociabilidade em mundos virtuais
As implicações da liberdade de escolha
Por Erika Uehara e Isabelle Araújo
Imagine um espaço regido pela liberdade, democracia e flexibilidade. Um espaço no qual se possa transitar livremente entre diferentes ambientes; que não seja limitado pela biologia e nem pela geografia, ou mesmo pela física. Onde seja possível realizar trocas de idade, de nome e de gênero com tamanha fluidez tal qual se troca de roupas. Um espaço no qual haja, enfim, uma infinidade de caminhos sem as limitações naturais da vida real, sem o próprio corpo físico, mas com as conexões interpessoais que estabelecemos em um bar, uma livraria ou uma festa. Esse é o conceito dado pelos teóricos dos anos 90 ao chamado cyberspace, termo que, por sua vez, é derivado do cyberpunk cunhado por William Gibson em 1984.
Na ocasião, acreditava-se ser a internet um espaço realmente infinito em possibilidades e no qual o ser humano, descolado do seu corpo físico, poderia criar e recriar a si mesmo, indefinidamente, de modos experimentais, através dos chamados “avatares”. Hoje, essa ideia muito está atrelada aos MMOs (do inglês massive multiplayer online), tais quais, por exemplo, “World of Warcraft” e “Second Life”. Aliás, a definição deste último dada pela própria desenvolvedora do jogo, Linden Lab, é “um mundo virtual em 3D onde os usuários podem criar, conectar-se e conversar uns com os outros ao redor do planeta através de voz e texto”.
De certo modo, esse é o conceito é o fio condutor a “San Junipero”, quarto episódio da terceira temporada da série “Black Mirror”. Em síntese, sua trama envolve dois avatares que se conhecem num mundo virtual e formam ali uma conexão que atravessa tempo e espaço e perdura até depois de suas mortes. O episódio ganhou tanta repercussão que, na edição de 2017 do Emmy Awards, recebeu os prêmios de “Outstanding Made for Television Movie” e “Outstanding Writing for a Limited Series, Movie, or Dramatic Special”. No IMDB, possui atualmente nota 8.8 e está em segundo lugar entre os episódios mais bem-avaliados de “Black Mirror”, ficando atrás somente de “White Christmas” (segunda temporada, quarto episódio). Atuações, trilha sonora e figurinos à parte, o que é elementar em San Junipero e explica tamanha popularidade entre o público que acompanha a série, talvez, seja o diálogo que o episódio trava com questões de sexualidade e identidade LGBT, bem como a provocação que faz a respeito dos limites (ou a falta deles) dentro de um mundo que, apesar de virtual, tem repercussões reais e bastante sérias no nosso plano físico.
O enredo foca nas personagens Kelly e Yorkie, duas jovens em um espaço que, à primeira vista e sem muitas explicações, parece funcionar à base de uma espécie de viagem no tempo, mesclando diferentes décadas e ambientes. Ao longo do episódio, revela-se que esse mundo é San Junipero, uma realidade paralela criada na nuvem e na qual transitam pessoas ainda vivas; idosos a quem é permitido o acesso a essa nova tecnologia somente durante algumas poucas horas semanais e, com ela, novas experiências sensoriais por meio de seus jovens avatares. A tecnologia permite, ainda, que seja feito o upload da consciência de pessoas que já faleceram para que “habitem” em San Junipero, de modo que a pós-morte se torne, assim, uma extensão da vida.
Decerto que, talvez mais do que os outros episódios de “Black Mirror”, “San Junipero” nos gera mais dúvidas do que fornece respostas. E, para o Direito, em particular, dá vazão a uma série de discussões: quão plausível é, na nossa realidade, a implementação de um sistema que, de antemão, esbarra numa série de dogmas religiosos, apresentando-nos a uma possibilidade real de vida após a morte? No que concerne à vigilância, quais são as ressalvas a serem feitas aos usuários desse sistema, considerando que, muito provavelmente, há monitoramento sobre cem por cento do que os avatares falam, fazem e produzem? Como é feita a regulação desse espaço, quais são os seus termos e condições e, mais especificamente, o que acontece se alguém cometer um crime dentro de San Junipero? Existe uma legislação paralela à nossa realidade e, por conseguinte, um tribunal paralelo? É possível praticar atos anonimamente em San Junipero? A que propósitos e a que interesses a empresa desenvolvedora do universo atende, e quais são os limites à imersão da propaganda de outras empresas nele? E, por fim, qual é a postura política adotada pelo governo em relação a temas tão delicados como a eutanásia e o suicídio assistido, e de que modo a nova tecnologia impacta a saúde mental da população?
Ao mesmo tempo em que essas perguntas carecem de respostas, não se pode ignorar que, em um momento no qual a humanidade cada vez mais se apoia na tecnologia e dela se torna dependente, o acesso a San Junipero, mais do que um simples jogo MMO como “World of Warcraft” ou “Second Life”, funciona, acima de tudo, como uma ferramenta terapêutica. Kelly, no período de tempo mais avançado do episódio (que deve remeter ao ano de 2027), é uma senhora viúva com mobilidade bastante reduzida e que está nos seus últimos momentos de luta contra um câncer, enquanto Yorkie, tetraplégica, é uma idosa que passou a vida acamada após sofrer um acidente de carro. Ao entrar em San Junipero, entretanto, as duas protagonistas tornam-se livres para se locomover e para fazer suas próprias escolhas. Yorkie, em especial, após passar mais de quarenta anos paralisada por conta de um acidente que sucedeu uma briga com seus pais homofóbicos, vivencia no mundo virtual, pela primeira vez, todas as experiências que lhe foram tiradas na juventude. Kelly inclusive descobre que Yorkie, diante da discrepância de possibilidades entre a experiência em San Junipero e a realidade na cama do hospital, optou pela própria morte para enfim poder viver como permanente (full-timer, no original em inglês) no mundo virtual.
Sem dúvidas, é curioso como a direção do episódio nos leva a considerar, por um lado, o significado metafísico de San Junipero como sendo um equivalente ao paraíso (o que, aliás, ardilosamente nos remete à música-tema do episódio, “Heaven is a place on earth”) e, por outro, o caráter sombrio e questionável dessa tecnologia. De acordo com estudos que analisaram relações humanas dentro de ambientes virtuais, as realidades virtuais tendem a promover o autoconhecimento e a ruptura de padrões sociais, muito porque diminuem os riscos de uma possível repreensão social e também garantem segurança física. No entanto, uma identidade virtual (o avatar), embora moldada para aparentar realidade, acaba por não responder igualmente a interações quotidianas. Nossa exposição física natural, bem como os limites sociais a que estamos submetidos, acabam por interferir não só em nossos comportamentos e respostas, mas também em como nos sentimos e como manejamos esses sentimentos.
Essa reflexão nos remete, inclusive, ao falecido marido de Kelly, que sentiu a perda de sua filha (a quem a tecnologia de San Junipero não pode ser ofertada, uma vez que não havia ainda sido lançada) e se recusou a fazer o upload de sua consciência na nuvem, optando pela morte. Essa decisão muito se baseou no fato de que a realidade virtual oferecia uma experiência que ele acreditava não ser verdadeira, e sim somente uma ilusão. Tal visão muito se refletiu nas atitudes de Kelly, para quem o programa, inicialmente, significava apenas uma forma de aproveitar seus últimos meses de vida.
E, por fim, o que há de mais doce no episódio foi também uma maneira bastante efetiva de se abordar um assunto que é, acima de tudo, político. O final feliz do casal de protagonistas, muito coerente com o que Giddens, Beck e Beck-Gernsheim denominaram “noção de relacionamento romântico”, que na contemporaneidade vai muito além da escolha particular de um único indivíduo, foi possibilitado, em parte, por uma brusca mudança de decisão de Kelly, que optou por permanecer com Yorkie em San Junipero. Sem dúvida que, em meio a um cenário composto, por um lado, de sub-representatividade e, por outro, de uma legião de personagens LGBTs quase sempre conduzidos à morte em produções tanto televisivas quanto cinematográficas, o final feliz (que, por inúmeros motivos, talvez seja questionável, mas não entraremos neste mérito aqui) de Kelly e Yorkie é muito bem-vindo. Ponto para “Black Mirror”.
Questionado sobre o porquê de serem as duas protagonistas do episódio um casal de mulheres, Brooker respondeu: “por que não?” De fato, o criador parece não ter intencionado, ao menos de início, discutir a questão da representatividade LGBT. Ele afirmou em uma entrevista: “Eu acho que é muito sobre a interpretação de Gugu [Mbatha-Raw, que interpreta Kelly] e Mackenzie [Davis, que interpreta Yorkie], mas você nem precisava pensar na sexualidade delas. Eram apenas duas pessoas apaixonadas”. No final, o episódio acabou por ser premiado até mesmo no GLAAD Media Awards, onde se saiu vencedor na categoria de “Outstanding Individual Episode (in a series without a regular LGBT character)”. Em outra entrevista, Brooker afirmou estar estudando a possibilidade do episódio ganhar uma continuação em futuras temporadas. A nós cabe torcer e esperar.