Black Mirror: “The Entire History of You” (S01 E03), memória e esquecimento na era digital
Toda a sua história: memória e esquecimento na era digital
Por Heloísa Helena Silva e Maria Eduarda Scott
E se pudéssemos registrar tudo o que vemos e ouvimos, através dos nossos sentidos, para a posteridade? E se tivéssemos completo controle sobre nossas lembranças? E se, sem grandes esforços, fôssemos capazes de editar, apagar, retomar e reproduzir todas as nossas memórias ao apertar um simples botão? Esta é a premissa com que se inicia o terceiro episódio da primeira temporada da série britânica Black Mirror, intitulado “Toda a Sua História”. Em um futuro fantasioso, as pessoas possuem uma tecnologia ligada ao próprio sistema nervoso que permite que todas as vivências do dia a dia sejam armazenadas, garantindo acesso direto e simples a todas as memórias categorizadas – seja por ano, por pessoa ou pela compartimentalização de escolha do usuário. Além do acesso pessoal às lembranças, estas podem ser reproduzidas e compartilhadas, repassadas como partes de um filme.
Este ponto de partida desperta certa curiosidade – afinal, o modo como construímos nossas memórias faz parte de um dos aspectos mais essenciais do ser humano. A humanidade, em toda a sua história, se comporta de modo que recordar é um esforço e esquecer é a regra. Quantas vezes não nos vemos tentando reconstruir em nossas mentes momentos que gostaríamos de lembrar com mais detalhes, conversas que gostaríamos de reviver, mas cujo exercício mental, por mais esforço que requeira, não parece suficiente para que os eventos passados retornem à nossa lembrança com precisão?
De antemão, parece interessante esta nova relação que a era digital vem construindo com o acúmulo de memórias. Por mais que a habilidade em retomar o passado aparente trazer conforto, há certas consequências envolvidas na mudança do paradigma humano com relação ao esquecimento e à lembrança. Esta mudança vem fazendo cada vez mais parte da realidade de todos nós, com o advento de uma série de tecnologias digitais que permitem que tudo seja guardado – existe um esforço e uma afeição cada vez maior pelo ato de recordar as coisas, seja nas ações de filmar, fotografar, ou se manifestar em redes sociais. Voluntariamente, a atividade de construir recordações a serem compartilhadas tem se tornado rotineira e a humanidade vem desaprendendo a esquecer.
As consequências deste processo são inúmeras – existe um aumento na precisão, na acessibilidade e durabilidade das informações, que se tornam de certo modo mais patentes. Além disso, há também um desenvolvimento tecnológico voltado para a própria articulação e organização dessas informações no meio digital, ampliando a capacidade de compartilhamento, compilação e pesquisa de conteúdos, como é feito por meio de ferramentas de busca na internet e das hashtags, por exemplo. Assim, o resultado desse fenômeno ultrapassa o armazenamento e a produção de conteúdo, impactando também os mecanismos de busca e acesso maciço a tais conteúdos.
Enquanto, por meio de nossos esforços individuais em recordar, estamos constantemente esquecendo e reconstruindo elementos de nosso passado, a memória digital garante acesso direto e permanente aos fatos. Assim, reconstruir, mudar e evoluir o sentido de experiências passadas dá lugar a um passado constante e congelado no tempo. Essas tecnologias que compõem a memória digital ressignificam a relação com o passado, pois a precisão e qualidade das memórias diminuem o espaço para incertezas, abstrações e o próprio esquecimento, já que, ao tornar cada episódio claro e perene, superam os mecanismos de esquecimento da mente humana, que por tanto tempo foram essenciais para permitir uma valoração do passado mais voltada para o todo do que para particularidades.
As tecnologias solidificam as memórias passadas não somente para quem as vivenciou: em grande medida acabam perpetuando-a no mundo digital para o alcance de todos. Se uma pessoa se manifesta nas redes sociais ou dá origem a uma notícia pública, este conteúdo está permanentemente disponível para o acesso de outros – o que torna os indivíduos cada vez menos sujeitos de suas próprias experiências, na medida em que não possuem mais controle total sobre quem as acessa, quem pode recordá-las e de que forma interagem com esse conteúdo. Consciente disso, é natural pensar na possibilidade de que alguém deseje se dissociar de determinada experiência passada, a fim de que o mundo digital não tenha eternamente recordação desses fatos.
Nesse contexto, surge um debate sobre o “direito ao esquecimento”, um conceito novo, que gira em torno da possibilidade de reivindicação do direito ao conteúdo pessoal disponível nas tecnologias digitais e na possibilidade de deletá-lo do domínio público, a fim de não ser permanentemente assombrado por acontecimentos do passado. Essa proposta de “direito ao esquecimento” se centra na análise dos pedidos de remoção ou desindexação de conteúdos disponíveis na internet que de alguma forma seja ofensivos, desatualizados, inverídicos ou constrangedores para quem pleiteia o “esquecimento”. A permanência dos conteúdos digitais no ar por tempo indefinido, associada à ampliação das possibilidades de busca, pode afetar as pessoas de maneira negativa, atingindo direitos fundamentais como intimidade, honra, imagem e vida privada.
E se a “eternização” do passado através das novas tecnologias é problemática, também o é essa possibilidade de esquecimento seletivo, que pode resultar na censura e manipulação do passado histórico e de informações. A tecnologia digital abre espaço para a manipulação de memórias, a partir da exclusão seletiva de informações e da edição de conteúdos (seja em vídeos, em fotos, textos), o que acaba por descontextualizar e reconstruir eventos do passado nessa nova dinâmica de armazenamento.
Como se não bastasse o armazenamento das memórias digitais e a dinâmica de compartilhamento de memórias, experiências e realizações cada vez maiores, agora somos todos produtores de conteúdo que é armazenado e divulgado nas redes, com a participação também de outros sujeitos, envolvidos numa rede de compartilhamento e preservação de informações pessoais, sobre as quais temos cada vez menos controle direto quanto ao acesso e durabilidade. As memórias digitais são criadas em plataformas e mídias digitais, que a partir disso, detém o controle desse conteúdo, seja por meio do acesso e armazenamento de dados pessoais, seja pela submissão dos usuários aos termos de uso ditados por esses gigantes da tecnologia.
Esse fenômeno pode ser comparado ao panóptico de Bentham – um mecanismo arquitetônico utilizado para controle e disciplina em prisões, fábricas e escolas -, integrante de uma cultura de vigilância, em que uma pessoa pode observar cada uma das outras pessoas em tempo permanente, sem que seja ela mesma observada e de modo que as demais não saibam se estão sob vigilância. Tal controle social agora é dissimulado pelas novas formas de tecnologia e comunicação e naturalizado nas nossas rotinas: tudo se torna visível a partir de um exercício de poder invisível. As grandes corporações da internet e da tecnologia detém cada vez mais dados dos clientes e usuários e, como contrapartida, pouco acesso a informações sobre os algoritmos de busca e indexação de conteúdos, políticas de armazenamento e compartilhamento de dados, entre outros procedimentos adotados por essas empresas, são divulgados. É como se, ao aderir a essas tecnologias a partir do clique no “Li e Aceito” (na maioria das vezes, sem de fato o termos feito), fosse autorizado que certas organizações ocupassem lugar privilegiado de observação dos sujeitos no “panóptico virtual”, sem que seja oferecida uma transparência recíproca, de modo que usuários restam em clara desvantagem diante das corporações.
Se Foucault, antes mesmo de imaginar que a tecnologia provocaria estas mudanças com relação a nossas recordações, afirmava que “a visibilidade é uma armadilha”, podemos dizer que estamos hoje mergulhados num campo de visibilidade – a todo momento estamos suscetíveis à vigilância das câmeras de segurança, aos registros fotográficos e/ou de vídeo realizados por nós mesmos, por amigos ou por completos desconhecidos e à velocidade com que tais registros são compartilhados e eternizados digitalmente. Assim, percebe-se que existe a necessidade de reflexão cuidadosa sobre a forma com que produzimos e compartilhamos conteúdo, com quem compartilhamos essas informações e os impactos dessas interações, que se preservarão durante a eternidade no espaço virtual. E, sobretudo, trata-se da importância de pensarmos em como desejamos estabelecer as nossas relações e como desejamos construir nossas experiências – tanto as passadas como as futuras – nesse contexto.