A regulação do transporte individual em São Paulo: o que está em jogo?
O impasse sobre a Uber e a regulação do transporte individual está longe de ter fim em São Paulo. Nas últimas semanas, aconteceram mudanças importantes no Executivo e no Legislativo. Enquanto os vereadores conseguiram a aprovação de uma nova lei para aplicativos de táxis, a Prefeitura lançou uma consulta pública com uma inovadora proposta de regulação de “operadoras de transporte credenciadas” que fazem uso do viário urbano.
Nesse texto, explicamos quais são essas mudanças e no que consiste a consulta pública proposta em São Paulo. O que está em jogo é o futuro do transporte individual mediado por novas tecnologias para quase 20 milhões de pessoas.
Quais as novas medidas do Legislativo em 2016?
Na terça-feira (05/01), foram sancionadas em São Paulo duas leis, a Lei Municipal nº 16.345/2016, que cria novas regras para o serviço de táxi em caso de solicitação por aplicativo ou internet no município, e a Lei Municipal nº 16.344/2016, que eleva o valor da multa por transporte remunerado individual de passageiros em veículo não autorizado. Essas novas regras tornam ainda mais complexo o já conturbado cenário jurídico do transporte individual de passageiros na cidade de São Paulo, alterado diversas vezes ao longo dos últimos meses por decisões do Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.
Da forma como foi redigida, a Lei 16.345 embaralha ainda mais a discussão sobre regulação de empresas como Uber e Waze, que oferecem (ou pretendem oferecer) serviços de tecnologia para o transporte individual remunerado de passageiros, um conceito jurídico controverso. De acordo com esta lei, a prestação de serviço de táxi por meio de aplicativo (app), dependerá de credenciamento junto ao poder público, que só poderá ser feito por empresas sediadas na cidade de São Paulo. Em caso de descumprimento, há previsão de multas para empresas e pessoas físicas.
O caráter punitivo destas novas leis, aprovadas pelo Poder Legislativo municipal, contrasta com uma recente iniciativa de regulamentação de um modelo inovador de transporte individual, lançado pela Prefeitura de São Paulo, nos últimos dias de 2015. O projeto de decreto, que poderá receber comentários, contribuições e sugestões até o dia 27 de janeiro de 2016, é bastante sofisticado e propõe regular “Operadoras de Transporte Credenciadas (OTCs), definidas como “operadoras de tecnologia responsáveis pela intermediação entre os motoristas prestadores de serviço e os seus usuários”.
Para que o modelo de OTCs funcione, é preciso firmar o entendimento de que o transporte individual terá dois tipos em São Paulo: o dos taxistas (mediado por aplicativos como Wappa, 99 Taxi e Easy Taxi) e dos motoristas cadastrados em operadoras de transporte (mediado por empresas como Uber, BlaBlaCar, MeLeva e Ponga).
O que muda com a regulação proposta pela Prefeitura?
A Prefeitura de São Paulo propõe solução regulatória nova e diferente das normas criadas em grandes cidades americanas como Nova Iorque, Cidade do México e Bogotá.
Dentre as diversas inovações propostas, está a cobrança pelo uso do viário urbano, que será condicionada à aquisição de créditos de quilômetros pelas OTCs, mediante autorização do poder público, emitida após o pagamento de preço público. Um aspecto interessante é que estes créditos servirão como instrumento regulatório para controlar a utilização do espaço público e a exploração do viário urbano, de acordo com as políticas públicas municipais.
Além disso, o consumo dos créditos pelas OTCs poderá ser diferenciado a depender do horário da corrida, o local de início e fim, ou o tipo de carro utilizado. Dessa forma, será possível incentivar comportamentos dos agentes, cobrando menos por corridas na periferia, fora do horário de pico, ou com carros adaptados para usuários com deficiência ou mobilidade reduzida, por exemplo.
Outra novidade interessante do modelo proposto é a obrigação de compartilhamento de dados entre as OTCs e a Prefeitura, que será centralizada no Laboratório de Tecnologia e Protocolos para Mobilidade Urbana – o Mobilab. Com isso, as OTCs deverão alimentar o poder público com dados importantes para o controle e a regulação de políticas de mobilidade urbana, tais como duração das corridas, mapas dos trajetos, e avaliação dos serviços prestados. Esse é um ponto crucial para se pensar a regulação das “cidades inteligentes” e a dependência do Poder Público de dados captados por agentes privados.
Como fica o mercado de transporte individual de passageiros, se o modelo de OTCs for aprovado? | |
Táxi comum, rádio-táxi, especial e luxo | Não há alvarás disponíveis no mercado. Tarifas são definidas pelo poder público e calculadas por taxímetro. Podem ser conduzidos apenas por taxistas cadastrados junto à Prefeitura. |
Táxi preto | Novos alvarás serão sorteados pela Prefeitura. São requisitos: a disponibilização de meios eletrônicos para pagamento; adoção de plataforma tecnológica entre usuários e taxistas; utilização de mapas digitais, avaliação da qualidade do serviço pelos usuários e disponibilização eletrônica ao usuário da identificação do taxista. É admitida a adoção de tarifas variáveis, observando o limite de acréscimo de até 25% do valor da categoria comum. |
OTC | Modelo restrito às operadoras de tecnologia responsáveis pela intermediação entre os motoristas prestadores de serviço e os seus usuários. Operação condicionada à aquisição de créditos de quilômetros, por meio da emissão de Termo de Autorização de Operação. |
Segundo o projeto apresentado, a regulação de transporte individual remunerado pelas OTCs ficará a cargo da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb) da Prefeitura. Essa alocação de competência também contribui para diferenciar o modelo de OTCs dos táxis tradicionais, cuja competência para regulação é da Secretaria de Transportes (SPTrans). Se, por um lado, a separação de competências aparenta ser interessante tendo em vista as diferentes finalidades regulatórias que se objetiva com a normatização proposta, por outro, a íntima relação existente entre os OTCs e o serviço de táxi pode gerar alguns descompassos em virtude da duplicidade de autoridades reguladoras.
A criação do Comitê Municipal de Uso do Viário (CMUV) aparenta ter a finalidade de coordenação política. No entanto, seu desenho institucional não nos parece ter dado conta de todos os interesses setoriais envolvidos, trazendo apenas uma norma permissiva de participação de outros órgãos e entidades municipais.
A regulação proposta, no entanto, merece elogios por várias inovações. Além da criação de uma categoria jurídica nova e da flexibilidade do sistema de compra de crédito por uso do viário, há incentivo ao compartilhamento de veículos (obrigatoriedade de oferecimento deste serviço pelas plataformas tecnológicas) e estímulo à participação de mulheres.
O quão participativa é a consulta pública?
Além das novidades materiais propostas no texto do decreto, seu processo de elaboração também merece elogios. Como já defendemos em nossa contribuição à Câmara dos Deputados, as experiências internacionais bem sucedidas para regulação do transporte individual foram resultado de processo de discussão com agentes interessados e com a população. Nesse sentido, é importante a abertura da consulta pública pela Prefeitura de São Paulo, pois viabiliza participação social na definição dessa importante política pública.
No entanto, a plataforma online criada especificamente para este propósito, é bastante limitada e fica muito aquém de outras experiências participativas bem sucedidas levadas a cabo pela Prefeitura de São Paulo (como o Plano Diretor Estratégico e a Lei de Zoneamento), e pelo governo federal (como o Marco Civil da Internet e o Anteprojeto de Lei de Dados Pessoais). O formato adotado pela Siurb não foi o da minuta participativa, mas sim um formulário que permite apenas contribuições pontuais (limitadas a 500 caracteres) a um dos artigos do decreto. Nesse modelo, não há debate entre os participantes, nem mesmo é possível a submissão de textos técnicos com análises mais aprofundadas.
O impasse chegará ao fim?
É cedo para dizer se a proposta de separação entre transporte individual público (táxi) e transporte individual por OTCs será bem sucedida. O processo de consulta pública está encavalado em uma série de outras iniciativas do Legislativo, como novos projetos de lei de teor proibitivo e permissivo.
Além disso, há possíveis conflitos entre o decreto da Prefeitura e leis já existente sobre o setor, que deveriam ser anuladas por normas do mesmo nível hierárquico. Há, ainda, o risco de que a tentativa de regulação da Prefeitura seja vista como fora de sua competência, devendo existir lei federal.
O sucesso da proposta dependerá da efetividade da consulta pública, do grau de mobilização das empresas de tecnologia, da reação dos taxistas e vereadores e do grau de interesse demonstrado pelos cidadãos. É importante lembrar que o está em jogo não é a condição jurídica da Uber, mas algo maior: o surgimento de novas empresas de tecnologia e transporte e a importância de identificarmos o que importa neste tipo de regulação.
Por Rafael A. F. Zanatta, Beatriz Kira e Pedro B. C. de Paula