
WhatsApp prefere limitar alcance de mensagens a reduzir privacidade, diz CEO da empresa
Entre funcionar como uma rede social para difundir conteúdo para públicos amplos, como o Facebook, ou se manter essencialmente como um aplicativo de mensagens privadas, o WhatsApp prefere a segunda opção. É isso que afirmou o seu CEO, Will Cathcart, no final de julho.
Ele respondia à crítica de que as mensagens criptografadas do aplicativo teriam um grau de proteção muito alto, quando se considera que o WhatsApp não serve só para mandar mensagens de pessoa para pessoa, mas também para replicar uma mesma mensagem, em grandes grupos ou de forma privada para várias pessoas de uma vez.
Esse é um dos temas em debate neste momento, em torno da “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, conhecido como PL das Fake News. Entre várias propostas, o PL, que foi aprovado no Senado e neste momento está sendo debatido na Câmara dos Deputados, inclui uma medida que pretende tornar possível identificar a origem de uma mensagem que acaba viralizando. O InternetLab lançou, no início de agosto, um relatório sobre os riscos que a medida poderia trazer à privacidade, com entrevistas de cinco especialistas.
Para Cathcart, a preocupação com desinformação é “real e legítima”, mas a solução sugerida é “bastante assustadora”. Ela ameaçaria a privacidade do usuário, e se basearia na ideia de que, “se a polícia pensa que alguém encaminhou alguma coisa falsa, ela deveria poder rastrear as pessoas que a compartilharam e falar com elas”, diz o executivo.
Cathcart reconheceu que, “mesmo que o WhatsApp tenha sido projetado como aplicativo de mensagens privadas, algumas de suas funcionalidades podem fazer com que seja mais utilizado como aplicativo de difusão” em massa. Argumentou, assim, que a empresa tem dado uma resposta, alterando o aplicativo de forma a reduzir o alcance das mensagens. “A grande maioria das mensagens é de pessoa para pessoa, e nossa solução é dizer ‘nós deveríamos mudar as funcionalidades’, esse deveria ser um aplicativo de mensagens privadas”, disse.
Segundo o executivo, após as eleições de 2018, passou a ser possível mandar somente “uma mensagem uma vez para cinco chats de mensagens, ao invés de ilimitadamente”. Outro limite é o fato de grupos poderem possuir apenas 256 membros, argumenta.
Ele também afirmou que, em resposta à crise do coronavírus, o WhatsApp fez uma nova alteração entre abril e maio. Agora, se alguém encaminha uma mensagem mais de cinco vezes, não é mais possível usar a funcionalidade de encaminhamento rápido. “Você tem que encaminhar para uma pessoa por vez.”
A conversa ocorreu por videoconferência, como parte do RightsCon, conferência que discute anualmente a intersecção entre direitos humanos e tecnologia.
Além do PL das Fake News brasileiro, Cathcart falou sobre o aumento das interações digitais durante a pandemia do novo coronavírus, a espionagem por parte de governos e empresas ao redor do mundo; respondeu também a perguntas sobre coleta de dados em novas funcionalidades e em relação ao Facebook, e sobre a necessidade de transparência de aplicativos como WhatsApp por meio da abertura do código (software livre). Veja abaixo a transcrição da conversa, que pode ser assistida na íntegra em inglês aqui:
Criptografia sob fogo cruzado: discussão sobre ameaças a mensagens privadas (Transcrição traduzida)
Mariana Valente – Em 2016, um juiz brasileiro determinou a prisão do vice-presidente do Facebook para a América Latina em São Paulo. O motivo foi que o WhatsApp [de propriedade da empresa] se recusou a entregar mensagens relativas a uma investigação sobre tráfico de drogas. O WhatsApp não podia entregá-las, literalmente, por causa da criptografia.
Esse é, provavelmente, um dos melhores casos que ilustram a tensão entre defensores da criptografia e sistemas de Justiça. Desde então, o WhatsApp foi bloqueado duas vezes no Brasil, por motivos similares: a Justiça pedia o conteúdo do WhatsApp ao qual a empresa não tem acesso.
Como você avalia o valor do direito à criptografia, em um momento em que ela interfere com, ou compromete a segurança, ou até mesmo a saúde pública?
Will Cathcart – O coronavírus mudou nosso mundo de muitas formas. E uma dessas mudanças é nos forçar a realizar digitalmente conversas que costumavam ocorrer pessoalmente. Nós estamos falando por videoconferência, ao invés de juntos, no meio físico.
O que estamos vendo é a aceleração de uma tendência. Nossas vidas estão acontecendo on-line, e coisas que costumávamos fazer frente a frente estão acontecendo no digital.
Nós certamente observamos isso no WhatsApp. Em abril, tivemos um grande aumento do uso de nossos serviços, mais de 100 bilhões de mensagens entregues diariamente. Mais de 15 milhões de minutos de chamadas em voz ou vídeo.
Não conseguimos expandir esse volume para “features” como chamadas ao vivo em grupos, entre oito pessoas, e garantir a estrutura para manter o serviço confiável.
Ou, então, fazer mais parcerias com canais informativos da Organização Mundial de Saúde, ou como as linhas diretas para denunciar violência doméstica da Argentina e do Chile, de forma que pessoas que sofreram abusos em casa possam obter ajuda.
Mas o mais incrível não é o que fizemos, ou o número de usuários, mas sim as histórias sobre como as pessoas estão se comunicando digitalmente. Médicos fazendo sessões com pacientes, advogados trabalhando remotamente, cortes no Brasil e na Índia fazendo sessões por meio do WhatsApp.
Não acho que é um acidente que as pessoas tenham se sentido confortáveis para fazer isso nos últimos meses. Acho que isso vem da confiança de que a tecnologia mantém essas conversas em privado.
Mas acho que uma questão importante para nossos tempos é se vamos viver em um mundo em que isso será possível, em que poderemos manter essas conversas digitalmente. São conversas extremamente sensíveis, que as pessoas não teriam se não soubessem que elas são privadas.
Usamos uma tecnologia chamada de criptografia de ponta a ponta que assegura isso, garante que tenhamos certeza de que ninguém está ouvindo à ligação.
Ela garante que, quando alguém manda ou recebe uma mensagem ou uma ligação, ela seja embaralhada, do momento que deixa o telefone até chegar ao receptor. Ninguém no meio do caminho pode ouvi-la ou lê-la, nem mesmo o próprio WhatsApp.
Achamos que isso é crucial. Se você vai ter uma conversa muito importante e sensível digitalmente, precisa saber, com certeza, que ninguém vai ouvir. Como todos sabem, existem ameaças crescentes às conversas, como hackers e criminosos.
E também há serviços estrangeiros de inteligência. Há governos ao redor do mundo que querem espionar o que as pessoas estão fazendo.
A criptografia impede que isso aconteça. Ela protege “whistleblowers” [pessoas responsáveis por denúncias a partir de informações em sigilo] que falam com jornalistas, os jornalistas em geral, em países onde a liberdade de expressão está sob risco, comunidades vulneráveis por todo lado, e grupos sob risco em regimes opressivos.
Achamos que essa tecnologia é crítica para todas as conversas que temos digitalmente, especialmente para grupos que querem fazer a causa dos direitos humanos avançar.
Durante a pandemia, com muita radicalização nas mídias sociais, isso está sob ameaça. Não é algo dado que poderemos continuar mantendo serviços que contenham o mesmo nível de segurança da criptografia. Governos têm se mobilizado contra isso há muito tempo.
Você mencionou o histórico do Brasil. Mais recentemente, tem essa discussão que exigiria que as companhias ajudassem a rastrear quem deu início a uma mensagem que acabou viralizando [presente no PL das Fake News]. Na Austrália, no Reino Unido e nos Estados Unidos houve muita discussão sobre forçar companhias a reduzirem a segurança que oferecem. E, inclusive, discussões sobre criar leis para baixar a segurança.
Acreditamos que essa é uma decisão muito importante, que precisamos oferecer o produto mais seguro possível, é que isso é o melhor para o mundo. Esse debate parece ser novo, porque diz respeito ao espaço digital, mas não deveria parecer.
O que realmente deveríamos estar discutindo é se devemos ter o direito a uma conversa privada com alguém, ou se a tecnologia deveria acabar com isso. Porque tivemos conversas privadas durante toda a história, e o fato de que essas conversas se tornaram digitais é uma mudança na tecnologia, não deveria mudar nossos direitos. Quando pensamos no que faz sentido no mundo físico, a resposta é óbvia.
A sociedade atingiu um ponto em que podemos colocar uma câmera com um microfone na sala de estar de todos no planeta inteiro, conectadas a algum servidor central, de forma que governos e a Justiça possam vigiar, a partir de uma sala, onde os crimes estão ocorrendo.
Qualquer um desejaria evitar isso. Tenho certeza de que qualquer um, em qualquer contexto, ouvindo isso diria “isso é loucura, eu nunca faria isso”. Mas, por algum motivo, quando fazemos essa discussão sobre o contexto digital, ela parece nova. Nós não achamos que deveria ser assim.
Queremos ajudar qualquer um que tenha a possibilidade possa erguer sua voz para que tomemos as decisões corretas para a sociedade.
Mariana Valente – Você estava falando sobre a importância das comunicações digitais privadas, sem vigilância, para movimentos sociais, advogados, ativistas, comunidades vulneráveis. Mas acho que devemos olhar mais profundamente sobre os motivos pelos quais governos e sistemas de aplicação da lei são contra a criptografia.
Quando olhamos os argumentos pelos quais a legitimidade da criptografia é desafiada, vemos que as narrativas podem se desenvolver de forma diferente, em diferentes sistemas legais. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, há discussões em torno da segurança nacional e da investigação de crimes, especialmente terrorismo, tráfico de drogas e abuso sexual.
Certas tecnologias de criptografia são enfraquecidas na China com o objetivo de controlar o discurso, acredito. Mais recentemente, a desinformação tem impulsionado as discussões na América Latina e na Índia.
Você pode falar sobre a diferença entre tendências regionais? Seria interessante se pudesse comentar sobre diferenças ou semelhanças que vê entre países autoritários, em comparação com países supostamente mais democráticos, em se tratando na regulamentação da criptografia.
Will Cathcart – O mais importante é que o debate está acontecendo no mundo inteiro, em diferentes países. Porque a ameaça é a mesma. E o que acontece em relação à criptografia em um país pode impactar pessoas em outros países.
Por exemplo: um debate nos Estados Unidos em relação à regulação da criptografia afetaria pessoas do mundo inteiro que usassem servidores fornecidos por companhias sujeitas à lei americana.
De forma similar, em muitos lugares ao redor do mundo estão avançando contra a criptografia de ponta a ponta pelas bordas. Não dizem diretamente que a criptografia de ponta a ponta deveria ser ilegal, que deveria acabar.
Fizeram rodeios, com sugestões no sentido de dizer “ok, vamos requisitar um conjunto de outros tipos de dados; continuamos achando que não tem problemas com a criptografia de ponta a ponta, mas estas mudanças deveriam ser feitas”.
Mas acho que o barulhento e crescente debate na Austrália, no Reino Unido e nos Estados Unidos contribuiu para que pessoas de outros países, que talvez não teriam desejado desafiar a criptografia de ponta a ponta, se encorajassem a desafiá-la com mais vigor.
Por último, a diferença entre sociedades mais autoritárias e as democráticas e liberais, com um histórico da respeito ao Estado de direito e aos direitos humanos, traz um problema, porque não vivemos mais em um mundo com sistemas de comunicação separados por país. Vivemos em um mundo de comunicação global.
Se você propuser enfraquecer a segurança em países de tradição democrática, ocidental, liberal, com respeito aos direitos humanos, as pessoas daquele país ficarão sujeitas à espionagem e vigilância por parte de regimes autoritários.
Se você vive nos Estados Unidos, alguma parte das suas informações pessoais provavelmente foi roubada por pessoas trabalhando para os militares na China.
Um exemplo é o caso do “Equifax hack” [em que hackers chineses roubaram da agência pública americana de avaliação de crédito Equifax dados de mais de 147 milhões de americanos, incluindo número de seguridade social, endereço e data do aniversário]. Acho que, se eles [um país de tradição liberal que enfraquecesse a segurança] estiverem controlando suas comunicações, você deve esperar espionagem, vinda do mundo inteiro.
Em segundo lugar, se um país implementa uma legislação rígida em meio a um sistema global de comunicações, isso seria um problema no mundo inteiro. Porque todos os governos requisitariam, e fariam o que pudessem para ter acesso às comunicações privadas das pessoas.
Mariana Valente – Um dos argumentos que ouvimos com frequência das autoridades é o de que elas “ficariam no escuro” [“going dark”]; de que os investigadores ficariam sem acesso a provas se toda comunicação fosse criptografada. O que você pensa sobre isso?
Will Cathcart – Muitas pessoas ouvirão esse argumento e dirão “nossa, eu não quero que as autoridades fiquem sem nenhum dado, que ‘fiquem no escuro’, isso parece muito ruim”. Mas essa simplesmente não é a realidade. Eu diria que as autoridades vivem na era de ouro da vigilância. Há mais dados on-line sobre nossas vidas, capturados pelos aparelhos com os quais andamos por aí, do que jamais houve.
Aqui nos Estados Unidos, autoridades podem chegar com um mandato a fabricantes de telefone, a Apple ou o Google, e dizer “nos diga quem são todas as pessoas que estiveram nesta localização geográfica, nestes momentos”. Isso é algo com que nunca se sonharia antes.
É razoável dizer que mensagens privadas, ligações privadas, são tão sensíveis que não deveriam continuar existindo em um servidor. É um risco grande demais à privacidade. Mas isso não significa que as autoridades passariam a viver em um mundo em que não têm nada [de provas]. Essa não é a realidade.
Mariana Valente – A versão atual do PL das Fake News aborda as investigações de mensagens privadas. Há uma preocupação considerável no Brasil pelo fato de que WhatsApp e outros aplicativos de mensagem que utilizam criptografia de ponta a ponta foram centrais para campanhas de desinformação em eleições.
Alguns daqueles que realizam essas discussões se baseiam em uma distinção feita na literatura, entre comunicação privada e comunicação de massa, e apresentam o argumento de que certos aplicativos têm a proteção das comunicações privadas, mas, na verdade, servem como difusores de informação. E de que há informações não checadas que são impossíveis de rastrear. O que você pensa sobre essa distinção, e a que o WhatsApp tem servido?
Will Cathcart – Concordamos com a distinção de que [meios de] comunicações privadas são diferentes de mídias difusoras, com um formato público. Achamos que as mensagens privadas do WhatsApp são diferentes de redes sociais públicas, como Facebook, Instagram ou Twitter.
E achamos que as expectativas das pessoas são diferentes. Elas sabem que, quando dizem algo para todos que conhecem, todos em suas redes, isso é diferente de mandar uma mensagem de texto para uma pessoa, fazer uma ligação. Há sim questões legítimas sobre o fato de que, mesmo que o WhatsApp tenha sido projetado como aplicativo de mensagens privadas, algumas de suas funcionalidades podem fazer com que seja mais utilizado como um aplicativo de difusão.
A grande maioria das mensagens é de pessoa para pessoa, e nossa solução é dizer “nós deveríamos mudar as funcionalidades”, esse deveria ser um aplicativo de mensagens privadas. Desde as últimas eleições no Brasil [de 2018], por exemplo, só dá para mandar uma mensagem uma vez para cinco chats de mensagens, ao invés de ilimitadamente.
Mais recentemente, em abril ou maio [de 2020], com a propagação do coronavírus, decidimos fazer uma mudança de forma que, se você encaminha uma mensagem mais de 5 vezes, não é mais possível usar a funcionalidade de encaminhamento rápido. Você tem que encaminhar para uma pessoa por vez.
E há limites, como os grupos só poderem possuir até 256 membros etc. De forma geral, mudamos o produto para que se encaixe no [modelo de um] serviço de comunicação privada que queremos ser.
Em segundo lugar vem fazer aquilo que podemos, com os dados que temos, para combater o mau comportamento. Por exemplo, políticos criando milhares de contas falsas com seu aparato político, para difundir seu discurso. Agora, usamos automação e padrões de comportamento para encontrar e banir essas contas. Banimos mais de 2 milhões de contas por spam, todo mês.
Não achamos que a solução certa seja determinar que os padrões de privacidade de todos sejam rebaixados. Achamos que é muito melhor que as pessoas tenham um serviço de comunicação verdadeiramente privado, e que ele permaneça privado.
Por outro lado, falando sobre essa questão de privacidade no Brasil, acho que é muito importante que todos aqui compreendam que a preocupação em torno da desinformação é real e legítima, mas a solução que está sendo proposta é bastante assustadora. É a ideia de que, se a polícia pensa que alguém encaminhou alguma coisa falsa, ela deveria poder rastrear as pessoas que a compartilharam e falar com elas. Vamos pensar sobre isso, a ideia de alguém bater na sua porta e dizer: “você compartilhou uma coisa falsa, ou perigosa, ou inverídica, para uma pessoa, para uma única pessoa”.
Isso é bem maluco, e sem querer pintar uma imagem de pavor, há exemplos bem horríveis disso, que levaram a regimes horríveis ao redor do mundo. Na China, por exemplo, os serviços de mensagens são monitorados, eles [o governo] procuram desinformação e notícias falsas, de acordo com a sua definição.
Tem muitas reportagens sobre como o aparecimento do coronavírus em Wuhan levou médicos muito corajosos a compartilharem aquilo que viam, por meio de serviços de mensagens. E, em alguns casos, eles acabaram em apuros, ou tiveram que ouvir que aquilo que faziam era desestabilizador, ou falso, e que não deveria ser compartilhado. Foi só porque persistiram e encontraram formas inteligentes de fazer com que a informação fosse difundida que ela foi compartilhada.
Não acho que queremos viver nesse mundo. Tem que haver outras abordagens contra rumores e a favor de informação precisa.
Mariana Valente – Acho que podemos nos aprofundar na proposta de rastreabilidade do projeto de lei brasileiro. É uma proposta controversa, que vem da ideia de que autoridades devem ter o poder de identificar as fontes de mensagens que são difundidas, a partir da retenção de metadados. A lei requer que aplicativos de mensagens retenham dados sobre quem enviou certa mensagem, e quando, sob certas circunstâncias que servem para caracterizar encaminhamento em massa.
Mas alguns atores engajados, incluindo eu mesma, estão profundamente preocupados sobre como isso pode levar à vigilância em massa, e viabilizar formas de perseguição política e ser, além de tudo, ineficaz. Você estava mencionando o caso da China. Mas eu ainda queria ouvir duas coisas de você.
Como você vê esses deveres de rastreabilidade que exigem apenas a retenção de metadados, não havendo previsão sobre exibir os conteúdos das comunicações, como isso afetaria a privacidade?
Uma das coisas que estão sendo discutidas é que esses seriam dados que o WhatsApp já coleta. Então, uma coisa importante para se discutir é o escopo dos metadados que já são coletados e fornecidos a autoridades no mundo.
Will Cathcart – A coisa mais importante sobre os dados que temos são aqueles que não temos, que é o conteúdo das mensagens, ligações e conversas por vídeo que as pessoas fazem. Não podemos ter esses dados por causa da criptografia. Mas, sim, temos alguma quantidade de dados. Nossa filosofia é coletar o mínimo necessário para gerir o serviço de forma segura, mantê-lo seguro. Temos alguns dados como, por exemplo, endereço de IP.
Mas não temos nada próximo daquilo que vem sendo pedido nas legislações sobre rastreabilidade, e esse é o motivo pelo qual as estamos combatendo. Estamos combatendo essas legislações porque não queremos coletar essa informação. Por exemplo: não temos uma forma de verificar quem enviou uma mensagem. Não temos nem a informação sobre as pessoas para as quais todo mundo do serviço enviou uma mensagem. Não temos ou queremos ter esses dados.
Acho que o principal é termos receio de legislações, regulações, que exigiriam que serviços de mensagens, especificamente, coletassem dados que eles não querem coletar. Não temos esses dados, não queremos esses dados, e acho que as pessoas deveriam querer que nós não tivéssemos esses dados.
Mariana Valente – Vou voltar a esse ponto depois. Você deu um exemplo bem concreto sobre o caso dos médicos na China. Falando sobre outros governos pelo mundo, uma das questões que o WhatsApp tem enfrentado é, por exemplo, no caso do processo contra o NSO Group, o spyware [o WhatsApp está processando a empresa israelense por fornecer tecnologia utilizada para espionar jornalistas na Índia, políticos na Espanha e ativistas por direitos humanos no Marrocos]. Pode falar sobre esta questão, de um ponto de vista mundial?
Will Cathcart – Temos falado muito publicamente sobre isso, sobre cada vulnerabilidade que vem sendo explorada por meio de organizações com spyware. Nós consertamos essa vulnerabilidade, e falamos com todas as pessoas que foram afetadas por ela. Mas sentimos que precisávamos fazer mais, e ingressamos com um processo contra o NSO Group. Não posso falar muito especificamente sobre isso, exatamente por causa do processo.
Mas deixe-me falar sobre a indústria e a tendência, que acho que são muito importantes. Há uma indústria em crescimento de companhias que criam softwares hackers e spywares, e os vendem pelo mundo todo. São softwares aterrorizantes, que exploram vulnerabilidades nos seus sistemas operacionais para ajudar as pessoas a espionarem, com coisas inacreditáveis. Desde ler tudo no seu telefone até, potencialmente, ligar a câmera ou o microfone, silenciosamente, rastrear a localização física do aparelho, a distância, se você vai a alguma área específica.
A indústria diz que faz isso por propósitos legítimos, de aplicação da lei. Fala sobre combater o terrorismo etc. Mas as pesquisas sobre esse tema chegam a conclusões muito claras de que, na prática, essas tecnologias não têm sido empregadas para isso, têm sido usadas para cometer abusos.
Há pesquisas como a do Citizen Lab, de Toronto. É um trabalho incrível, que rastreou quem são as pessoas que realmente vêm sendo alvo. Há exemplos terríveis de jornalistas, ativistas de direitos humanos, autoridades do governo, líderes religiosos… É muita gente ao redor do mundo que luta pelos direitos humanos e está sendo alvo de espionagem de formas horríveis.
Achamos que isso está fora do controle, e que os governos deveriam intervir para acabar com isso. E, de maneira mais ampla, queremos ter certeza de que todos saibam que isso está acontecendo. Em primeiro lugar, você pode se manter a salvo e aprender o que pode fazer para se proteger. Em segundo lugar, ajude da forma como puder, informe os outros de que isso é completamente inaceitável, e tem que parar.
Mariana Valente – Acho que é essencial terminar essa entrevista com perguntas difíceis.
A primeira pergunta é: conforme o WhatsApp se move nessa direção de incorporar novas funções, como pensões e seguros, na Índia, ou [o serviço de pagamentos] WhatsApp Pay, em países diferentes, estamos falando de um modelo que precisaria de mais metadados para funcionar.
Ou mesmo com a integração com outros bancos de dados de usuários, como o do Facebook, como lidar com o fato, por exemplo, de que WhatsApp e Facebook parecem se basear em princípios muito diferentes sobre coleta de dados? Você não vê isso como uma contradição?
Will Cathcart – Nossos serviços podem exigir diferentes funcionalidades, ou trabalhar com diferentes dados, mas nossa filosofia sempre será a mesma: como oferecer serviços ótimos com o mínimo de dados que precisamos? Por exemplo, com coisas como pagamentos, pode ser que precisemos obter suas informações de cartão de crédito ou do banco para se conectar com o banco, mas vamos construir [os serviços] de forma a minimizar o que teremos, de forma que seja razoável, e que seja boa para as pessoas que desejem utilizá-los.
Mas pensamos que serviços públicos e de mensagens privadas são diferentes. Achamos que as pessoas têm expectativas diferentes para eles, e que deveriam tê-las, e que não é uma contradição que serviços de mensagens sejam extremamente privados.
O Facebook tem tido essa posição há muito tempo, e é por isso que, quando o Facebook comprou o WhatsApp, criamos uma criptografia de ponta a ponta com o apoio do Facebook. Parecia o modelo correto para a mensagem privada.
E a beleza da criptografia de ponta a ponta é que você não deveria precisar confiar no serviço que está utilizando, ou na companhia, você deveria simplesmente saber que eles não têm suas mensagens, e que não precisa se preocupar com isso. Uma das coisas boas sobre a criptografia de ponta a ponta é que ela remove essa necessidade de confiar, de se preocupar com um erro, ou com um hacker chegar a suas mensagens, porque isso simplesmente é impossível.
Mariana Valente – A segunda pergunta tem a ver com “como ter confiança de que você não precisa ter confiança?”. A comunidade técnica frequentemente diz que a criptografia de ponta a ponta segura requer softwares livres, ou abertos, para que seja possível ter certeza sobre a forma como funcionam, por meio da auditoria, por exemplo. Então, por que o WhatsApp não se movimentou nessa direção?
Will Cathcart – Isso é verdade, você precisa ter um serviço no qual as pessoas possam confiar, mas em que não tenham que confiar, assim por dizer. E softwares abertos são uma forma ótima de fazer isso. Usamos o Protocolo Signal [protocolo para criptografia de envio de mensagens criado em 2013, usado também no aplicativo Signal] para criptografia de ponta a ponta, que é aberto, e essa é uma técnica ótima. Há outras formas também, nós escrevemos relatórios informando como nossa tecnologia funciona.
Nós nos beneficiamos muito do escrutínio que recebemos por sermos um aplicativo muito popular. Toda vez que lançamos um aplicativo na Play Store ou na App Store, pesquisadores estudam o sistema binário. Tenho certeza de que seriam capazes de detectar qualquer tipo de mudança na forma como funciona nossa criptografia etc. Tem muitas formas de construir confiança com o tempo. Temos que pensar se é abrirmos mais nosso software, ou então por meio de mais escrutínio, por auditorias de terceiros. Vocês nos verão fazendo isso nos próximos anos.
Mariana Valente – Como você enxerga a criptografia nos próximos anos?
Will Cathcart – Acho que uma das pequenas coisas que perceberemos ao longo deste ano, em que precisamos ter tantas interações humanas digitalmente, é o quão importante isso é. Isso vai criar a conscientização para garantir que governos protejam nosso direito à comunicação privada, ao invés de tentar combatê-lo.
Eu fiquei chocado ao ver a imagem de uma reunião de gabinete em uma democracia, que foi realizada por meio de um aplicativo de videoconferência, que não era o WhatsApp. Alguém tuitou uma foto com todos esses líderes do governo, e eu pensei comigo mesmo “meu Deus, é bom que haja criptografia de ponta a ponta, é uma reunião de gabinete do governo, é uma questão de segurança enorme”.
Minha esperança é que isso leve à conscientização, e que as pessoas tomem a decisão correta, que possamos desfrutar, na próxima geração, da privacidade que já tivemos com a comunicação privada, e que já tínhamos antes de o mundo se digitalizar.