Violência contra mulheres online e os tribunais: observações preliminares
De acordo com pesquisa realizada pela ONG Plan International, a cada dez meninas e jovens mulheres, oito já sofreram com assédio virtual no Brasil. A estatística é uma das descobertas da pesquisa Liberdade on-line? – Como meninas e jovens mulheres lidam com o assédio nas redes sociais, realizada com 14 mil meninas de 15 a 25 anos, em 22 países, incluindo o Brasil. Esse dado demonstra como a violência baseada em gênero online impacta a vida de mulheres desde muito cedo em nosso país. O que é alarmante, pois as situações de assédio acabam se tornando uma das principais barreiras para que mulheres e meninas exerçam de maneira plena suas liberdades de expressão, movimentação e participação na internet.
Preocupação semelhante levou o InternetLab a se engajar em um projeto conjunto com a organização não governamental indiana, IT for Change. Desde 2018, em um diálogo Brasil/Índia, buscamos compreender como os mecanismos de comunicação perpetuam o sexismo, a misoginia e a violência direcionada às mulheres na internet. A pesquisa se construiu na interface entre os debates em torno da violência baseada em gênero online e a discussão acerca do que pode ser compreendido como discurso de ódio contra mulheres.
Nesse sentido, em uma das frentes do projeto, nos propusemos a observar como o discurso de ódio contra mulheres que ocorre na esfera online tem sido tratado nos tribunais brasileiros. Partimos da compreensão de que não existe um tratamento específico sobre o caso no Brasil, visto que não temos esse tipo de manifestação enquadrado em nenhuma tipificação penal ou em outras leis. A partir disso, questionamos: como e quais casos têm chegado ao judiciário, seja na esfera civil, seja na penal? As decisões dos tribunais fazem uso do termo “discurso de ódio” para descrever as situações? E quando o assunto são as redes sociais, plataformas como Twitter, Facebook e Instagram aparecem nas decisões?
Quais tribunais foram pesquisados
Para responder a estas perguntas, no decorrer de 2020, analisamos cerca de 1.980 acórdãos de 6 tribunais: Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Os acórdãos analisados foram coletados de forma automatizada nos portais de consulta jurisprudencial de cada um dos tribunais mencionados, por meio de técnicas de raspagem de dados com linguagem R. As palavras-chave utilizadas para o download dos acórdãos foram: “misoginia”, “misógino”, “misógino e discurso”, “feminismo”, “feminista”, “violência e mulher”, “sexismo”, “sexista”, “machismo” e “machista”, combinadas com os seguintes termos “internet”, “rede social”, “facebook”, “whatsapp”, “twitter” e “youtube”, colocando-as separadamente.
Neste universo, encontramos, em 340 dos 1.980 documentos, divididos entre a esfera cível e penal, casos em que ocorreram i) mobilização de termo misógino ou equiparável, como objetificação sexual, julgamento de caráter sexual, criação de perfil relacionando a vítima à atividade de prostituição e/ou (ii) ameaça à integridade física de mulheres — mesmo sem menção explícita a termos considerados misóginos — em ambiente virtual compartilhado por mais pessoas do que apenas o agressor e a vítima, como é o caso de posts em feed, grupos, páginas, tuítes, stories etc.
O que apresentamos aqui é uma análise preliminar desse material — que aponta para aprofundamentos que faremos e publicaremos nos próximos meses. A partir disso, queremos expor os caminhos que estamos percorrendo e abrir diálogos que possam enriquecer o percurso.
Tipos de ofensas encontradas
Ao analisarmos as ofensas proferidas, criamos 8 categorias para encaixar as práticas violentas que foram encontradas: i) hipersexualização das vítimas; ii) associação da vítima com prostituição; iii) questionamento quanto ao desempenho social da vítima com relação a maternidade; iv) articulação entre preconceitos de gênero e outros marcadores sociais da diferença; v) questionamento quanto à capacidade profissional das vítimas; vi) ameaças; vii) divulgação não consentida de imagens íntimas; e, por fim, viii) apontamentos de “defeitos morais”, que apareciam como sugestões de traição, golpismo e maucaratismo. Estas categorias, na maior parte das vezes,cruzaram-se, sendo raros os momentos em que apareceram sozinhas. Notamos, em todas as práticas de violência, a tendência de as mulheres terem suas vidas e morais lidas a partir de perspectivas que buscavam reforçar desigualdades de gênero articuladas a outras formas de opressão.
Vale apontar que nem toda ofensa pode ser considerada discurso de ódio. Queremos, com este projeto, entender o que chega na justiça e como é entendido, justamente para avançar na compreensão de como se caracterizaria o discurso de ódio contra mulheres e que dificuldades se encontram em seu tratamento legal diante do direito brasileiro.
Pontos preliminares a serem destacados
Um primeiro ponto que nos chamou atenção foi a dificuldade em definir o que seriam violências cometidas em espaços online considerados públicos ou privados. Essa divisão (e seus problemas), que tem um significado bastante importante na discussão de violência de gênero, parece borrar-se nas redes, por pelo menos dois motivos: a sua dinamicidade e a circulação de conteúdos entre elas. Isto quer dizer que é bastante comum que uma conversa no WhatsApp, por exemplo, seja transposta de maneira pública em uma rede social como o Facebook; ou que algo que foi publicado de forma privada no Facebook chegue a grupos de WhatsApp. Diante disso, tomamos a decisão de focar em casos que poderiam ser considerados, pelo menos em um primeiro momento, como públicos, ou seja, direcionamos a nossa análise para conteúdos que tivessem circulado não só entre a vítima e o acusado, mas de maneira mais ampla. Com isso, esperávamos fugir do que sabíamos que seria bastante prevalente: casos de violência doméstica psicológica. Um segundo ponto que nos chamou atenção foi a baixa presença das plataformas como partes do processo nos casos analisados: em apenas dez deles houve envolvimento das empresas de tecnologia.
A violência doméstica como categoria jurídica organizadora
É importante enfatizar que muitas das agressões que analisamos foram consideradas pelos tribunais como violência doméstica, uma vez que partiram de atuais ou ex-companheiros das vítimas. Porém, por terem ocorrido em espaços online considerados públicos, percebemos que essas agressões devem ser analisadas de forma mais complexa, já que não atingem somente a vítima, de forma individual, mas, também, o imaginário social sobre o modo como as mulheres podem ser lidas e tratadas.
A compreensão do sistema de justiça de que as agressões sejam colocadas de forma a individualizá-las e localizá-las como pertencentes ao âmbito de uma relação afetivo-sexual também se reflete no uso do conceito “discurso de ódio”. Olhando para uma multiplicidade grande de casos – muitos dos quais se adequariam nas múltiplas definições de ódio que circulam na literatura, no direito em outros países, e em decisões judiciais no Brasil — percebemos que esse termo não é utilizado nos tribunais para fazer referência às agressões online contra mulheres. Além disso, um dos achados da pesquisa é que, ao menos no que diz respeito aos casos analisados, não ocorre uma oposição entre as noções de “discurso de ódio” versus “liberdade de expressão”.
Como reflexão inicial, ponderamos que, ao não considerar as mulheres como um grupo que pode ser vítima de discurso de ódio online, o sistema judicial e os espaços de denúncia podem se tornar inábeis no combate à naturalização social dos discursos de ódio proferidos contra as mulheres enquanto grupo. Reforçamos, nesse cenário, a necessidade de que as violências cometidas que têm como base a desigualdade de gênero sejam pensadas de forma ampla, não se restringindo às esferas domésticas. Para tanto, é necessário que se desenvolva a discussão sobre práticas violentas direcionadas às mulheres como sujeito coletivo, incluindo os casos em que o discurso se dirige a uma mulher individualmente. Nos próximos passos, vamos também analisar como isso se relaciona com os conceitos de discurso de ódio (e sua operacionalização) presentes na literatura, em outros países e nos tribunais brasileiros (em relação a outros sujeitos).