“A questão não é discutir isoladamente a solução da tecnologia para problemas políticos, mas sim a política da tecnologia política”, diz uma das idealizadoras da campanha #MeRepresenta

Notícias Informação e Política 31.08.2018 por Maria Luciano e Francisco Brito Cruz

Evorah Cardoso é integrante do coletivo #VoteLGBT, da Rede Feminista de Juristas, e uma das idealizadoras da campanha #MeRepresenta durante as eleições de 2016, pela qual recebeu a nomeação na lista de Mulheres Inspiradoras de 2016 da Think Olga. Ela é doutora e mestre em sociologia jurídica pela USP e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEBRAP. Em entrevista conduzida por Larissa Romão e Lia Segre, ela discutiu campanhas digitais e representatividade na política. A entrevista faz parte de uma série realizada por alunos integrantes do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade (NDIS) da Faculdade de Direito da USP que discutiram, ao longo do primeiro semestre de 2018, questões ligadas à regulação de campanhas políticas e eleitorais na internet, desinformação e liberdade de expressão na rede.

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Evorah Cardoso é pesquisadora e uma das idealizadoras da campanha #MeRepresenta.

 

Uma visão feminista afirmaria que o sistema representativo eleitoral reflete o patriarcado existente na sociedade, o que resulta, por exemplo, no baixo número de mulheres no Legislativo. Em sua opinião, estamos em um contexto de mudança desse cenário por meio da tecnologia para uso político-eleitoral, ou a tendência é que continue acontecendo uma reprodução do sistema pré-Internet? Você poderia dar a sua opinião contando um pouco da experiência do #MeRepresenta?

 

Evorah Cardoso – Nós trabalhamos com duas dimensões de representatividade: a dos corpos, ou seja, a presença das minorias na política, e a das pautas, ou seja, pessoas na política que defendam essas pautas, independente de elas corresponderem a esses corpos, ou seja, integrarem uma minoria. Só trabalhar com uma dessas dimensões é insuficiente, porque ter a presença desses corpos nesses espaços de poder é importante justamente para disputar a narrativa interna, que tradicionalmente exclui essas pautas. Agora, ter, por exemplo, uma pessoa LGBT que é contrária a essas pautas em um espaço de poder não é de grande ajuda.

Partimos do diagnóstico de que os índices de subrepresentação política são gritantes no Brasil, já que as minorias, na realidade, representam 70% da população brasileira. Basta pensar que mais da metade da população brasileira é mulher, é negra. Assim, falar desses grupos como minorias políticas é um equívoco proposital do discurso. Tendo isso em vista, optamos por usar o termo GRUPOS MINORIZADOS, demonstrando que, na verdade, as regras do jogo político é que excluem esses corpos.

Vale esclarecer, ainda, que nós entendemos que o momento do voto não é um momento exatamente de transformação, motivo pelo qual temos pensado em outras atuações que visem disputar as regras do jogo político que excluem esses grupos. Além disso, há a questão com a qual nos deparamos em função do assassinato de Marielle Franco, que era uma das candidaturas mais visualizadas da plataforma. Percebemos que, devido ao cenário político terrível que vivemos, esses espaços não estão preparados para recepcionar esses corpos.

Assim, trabalharemos com a questão da reforma política, com o tema do discurso de ódio discriminatório… se tem partidos inteiros que estão se baseando nesses discursos para ganhar as eleições, depois que esses candidatos são eleitos, eles recebem uma áurea de imunidade parlamentar e se tornam inalcançáveis. Por isso, isso deve ser combatido antes.

 

Qual você acredita que seja o potencial positivo da Internet para candidatas mulheres?

Evorah Cardoso – As redes sociais não são uma panaceia, mas permitem a promoção de candidaturas com baixo orçamento, baixa visibilidade. As redes têm um potencial enorme, mas não são o suficiente.

Faz-se necessário, assim, pensar qual o público alvo da plataforma, como podemos atingir essas pessoas, pois sabemos que não é possível alcançar todas. Sabemos que atingimos pessoas jovens, que podem estar mais abertas a aprender coisas novas sobre a política. Até por isso, sabemos que trabalhamos com uma mudança de horizonte distante, pois a didática, comunicação e estratégia que utilizamos pode resultar em uma futura geração de eleitores, que não considere direitos humanos, por exemplo, como o oposto de capital político. Desse modo, não criamos compromisso de eleição, mas de transformação política.

 

Considerando o atual cenário de polarização instalado no Brasil, em que notamos um crescimento do discurso de extrema direita, incentivar as pautas identitárias nas eleições é uma boa estratégia? Ou poderia incentivar tal polarização?

Evorah Cardoso – Essa questão depende de com qual geração se está falando. Tem uma geração, a atual, que ainda não tinha visto retrocessos de direito, que só tinha visto redução da miséria, inserção nas universidades (ProUni, FIES…), e outros avanços. Mas, atualmente, estamos nos deparando com retrocessos, como a PEC do teto dos gastos, o impeachment, a falta de liberdade de expressão nos meios de comunicação, a propagação de discursos de ódio dentro e fora da política…

De certo que esses retrocessos vêm sendo construídos como estratégia política, e não é de hoje. Essa estratégia inclui angariar gerações mais antigas com base nesse medo de os filhos sofrerem lavagem cerebral, essa coisa de “direitos dos manos”.

E existem vários fatores que explicam esse contraste de geração e esse medo das gerações antigas. Não houve, por exemplo, uma reforma política ou uma democratização dos meios de comunicação. No mais, a lógica de inclusão foi trabalhada pelo consumo e não cidadania de aprendizado político popular. Não quero dizer que os movimentos sociais não trabalharam. Na verdade, trabalharam loucamente, mas estamos em dívida com essa geração e principalmente com a que está vindo depois, porque saúde e educação universal estarão ainda mais restritos.

É mais comum se ver um discurso derrotista, mas o que se vê hoje na disputa da política institucional é reflexo, por exemplo, de movimentação política de jovens, do “primeiro” junho de 2013, que consistia em jovens discutindo tarifas de ônibus e que depois foram ocupar as escolas públicas por todo o país para evitar que as escolas fechassem, o que, inclusive, eles conseguiram.  

Essa força de ganho de direitos está reverberando até agora, é tudo ação e reação. Ao mesmo tempo, vemos emergindo uma extrema direita, racista, misógina, LGBTfóbica, liberal na economia, mas não totalmente, porque não promove a liberalidade sobre os corpos, é religiosa, moral. Ou seja, a política está em disputa, em um momento de panela de pressão, de crise. E esses momentos têm muita potencialidade, podem trazer transformações, mas não para agora.

As bolhas de discurso na Internet mostram que o discurso dessa extrema direita é focado em algumas páginas apenas, enquanto o discurso de direitos humanos é pulverizado em várias páginas. O movimento progressista é mais horizontal, difuso, principalmente na geração atual, que usa redes sociais para mobilização. É uma guerra.

Aliás, para o pessoal mais antigo da agenda progressista, essa atuação da geração atual é abominável. Falam que não tem centralização, discurso único, hegemonia, que não vai levar a lugar nenhum. Vejo, na verdade, uma incompreensão política em termos de estratégia, um não reconhecimento da potência dessa juventude, que já ocupou escola, derrubou aumento de tarifa, e que está se mobilizando, por exemplo, nas marchas contra o [Eduardo] Cunha. Não foi um movimento feminista tradicional que mobilizou, foram grupos autônomos, não se sabe ao certo quem fez, como fez.

Falta, portanto, uma sensibilidade do campo progressista para reconhecer a força disso, e também de que, de fato, essas pessoas jovens não têm um acúmulo histórico das lutas/estratégias políticas que a geração anterior tinha. Houve um hiato de formação política entre a geração que combateu a ditadura militar e a atual, e elas têm palcos de ação política distintos, e não está havendo comunicação. Assim, a geração mais antiga enxerga a atual como alienada política, fruto do neoliberalismo, que só pensam em identidade de gênero. Só que eu discordo dessa visão. Acredito, na verdade, que todas essas pautas atribuídas como fragmentadas são a principal fonte de renovação que precisamos.

Veja, por exemplo, esses canais de YouTube que discutem temas políticos. A própria Jout Jout, que ajudou o #MeRepresenta, ou esses canais que ensinam a cuidar de cabelos afros. Uma mulher abre um vídeo para aprender a cuidar do seu cabelo e acaba se deparando com questões políticas, de interseccionalidade… essa geração também está aprendendo política, mas por outros meios. A geração mais antiga estava acostumada a outro cenário, a estruturas centralizadoras, como sindicatos e partidos fortes.

Onde isso vai dar? Não sei exatamente. Hoje a situação não está bonita, mas ou começamos a criar essas ferramentas para construir estratégia política a longo prazo ou vamos continuar perdendo sistematicamente. Mas, para isso, é necessário entender as linguagens todas, não dá para o setor progressista se fragmentar.

 

Então você acredita que a Internet é um ‘locus’ para participação política?

Evorah Cardoso – Acredito. Mas não se deve esquecer da questão das empresas na Internet. Toda essa movimentação pela Internet tem acontecido em plataformas privadas, não em praça pública, mas em um parquinho de condomínio. E as regras do condomínio são ditadas pela administradora do condomínio.

Houve um momento de efervescência, a época dos “textões no Facebook”, como se fosse uma Ágora pública, mas, na prática, isso tudo é algoritmo. Para o Facebook foi ótimo, que cresceu muito com todas essas disputas políticas recentes.

É muita informação que essas empresas têm das pessoas. E agora, por exemplo, o Facebook está lançando uma ferramenta de engajamento cívico nessas eleições. A ideia é questionar os candidatos acerca do posicionamento sobre determinadas pautas, validar os perfis no Facebook desses candidatos e permitir que os usuários do Facebook encontrem esses candidatos com base nisso.

O #MeRepresenta busca oferecer uma tecnologia em favor da política, e, por outro lado, já há anúncio sobre o surgimento de plataformas privadas de ‘match político’ nestas eleições (Ex: da Folha, do Eduardo Mofarrej com o Luciano Huck, do Magazine Luiza). Ou seja, há uma iniciativa privada que também está se organizando politicamente para construir plataformas de ‘match político’. Mas a questão não é discutir isoladamente a solução da tecnologia para problemas políticos, mas sim a política da tecnologia política.

Precisamos, mais do que nunca, discutir as plataformas privadas, o destino dado à tanta informação, a política da tecnologia. Qual o uso de dados dos eleitores que pode ser feito por essa iniciativa privada em um contexto que não há sequer leis de proteção de dados, que não se sabe a lógica dos algoritmos, os termos de uso?

 

Quer fazer comentários sobre as perspectivas dessas eleições?

Evorah Cardoso – Acho que vai ser uma derrota acachapante nas urnas, mas uma vitória na comunicação.

O que estamos vendo hoje de retrocesso é resultado de ação política planejada de tomada de poder que deu muito certo, e as próprias esquerdas apoiaram esse crescimento para formar as bases políticas de aliança. Assim, temos que planejar uma contra estratégia que seja também de longo prazo, e acredito que isso se dê pela comunicação.

Tem que se comunicar com essa geração jovem que está sim se aproximando da política, não simplesmente de forma individualizada e sectária, mas que está ligando os pontinhos em relação à desigualdade social, à necessidade de políticas distributivas.

Nesse sentido, a plataforma e a comunicação proporcionada por ela também servirá como um espaço didático para as pessoas aprenderem e entenderem política, direitos humanos. É um trabalho de formiguinha, mas que gera resultados.

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EntrevistadorasLarissa Romão e Lia Segre

Edição: Maria Luciano e Francisco Brito Cruz

 

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