InternetLab recomenda que Meta adote estratégias apropriadas à realidade política e eleitoral brasileira
Em 3 de janeiro de 2023, dois dias após a posse do atual presidente do Brasil, um usuário do Facebook publicou um vídeo que possuía, em sua legenda em português, um apelo para “sitiar” o congresso brasileiro como a “última alternativa”. O vídeo possuía, em seguida, um discurso de um conhecido general brasileiro – e apoiador do ex-presidente- convocando as pessoas a se dirigirem ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal; e imagens que incluíam um incêndio na Praça dos Três Poderes em Brasília. O conteúdo recebeu mais de 18 mil reproduções, não teve compartilhamentos e foi alvo de sete denúncias.
No mesmo dia em que foi publicado, um usuário denunciou o vídeo sob o argumento de que ele violava a política dos Padrões da Comunidade da Meta sobre violência e incitação, que proíbe apelos para “entrar à força em locais […] onde há sinais temporários de risco elevado de violência ou dano no meio físico”. Um moderador humano analisou o conteúdo e concluiu que ele não desrespeitava as políticas da Meta. O denunciante fez uma apelação da decisão, relacionando o potencial do conteúdo de incitar a violência com o movimento de pessoas no Brasil “que não aceitam os resultados das eleições”. O moderador que analisou a apelação, no entanto, também decidiu pela manutenção do conteúdo na plataforma. Após essa denúncia, outros quatro usuários denunciaram o conteúdo sete vezes entre os dias 3 e 4 de janeiro. Essas denúncias foram analisadas por cinco moderadores diferentes e todos eles também consideraram que o conteúdo não desrespeita as políticas transnacional, companhia dona do Instagram, Facebook e WhatsApp.
Entretanto, em razão dos protestos que ocorreram posteriormente, no dia 8 de janeiro, em que mais de mil apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e a Presidência da República, intimidando policiais e destruindo o patrimônio público, a Meta considerou que as várias decisões de manter o conteúdo no Facebook foram um equívoco. Assim, a Meta, em 20 de janeiro de 2023, removeu o conteúdo, aplicou uma advertência à conta de quem o publicou e limitou certos recursos da conta, impedindo a pessoa de criar conteúdo novo.
O caso foi selecionado pelo Comitê de Supervisão da Meta (Oversight Board) sob a justificativa de analisar como a Meta modera conteúdo relacionado a eleições e como está aplicando o Protocolo de Política de Crise em um “local designado temporariamente de alto risco”, desenvolvido em resposta à recomendação do Comitê no caso “Suspensão do ex-presidente Trump”. O InternetLab apresentou contribuição a ele.
A contribuição do InternetLab
Em sua contribuição, o InternetLab ressalta que o ano de 2022 foi marcado por tensões online e offline acerca do período eleitoral. De forma que o período eleitoral e o resultado das eleições aqueceram e tornaram mais intensos discursos de conteúdo golpista, notícias falsas sobre a possibilidade de ocorrência de intervenção militar, alegações não comprovadas de falta de segurança no sistema eletrônico de votação e materiais de agitação, mobilização e incitação conectados com a realização de manifestações antidemocráticas. Todavia, mensagens que disseminavam esse tipo de interpretação equivocada e outros tipos de ataques ao Estado Democrático de Direito e à integridade do sistema eleitoral já circulavam desde janeiro de 2022 e continuaram a ser compartilhadas após a apuração das urnas, como apontado, inclusive, por pesquisa realizada por parceiros do InternetLab.
Nesse sentido, apesar de acertada a decisão da Meta de adoção de novas medidas visando às eleições de outubro, como a proibição de discursos de ódio e incitação à violência e política de remoção de conteúdos que interferiam na votação, verifica-se que há complexidades em sua operacionalização a serem enfrentadas em razão de contradições presentes na própria realidade brasileira. Assim, se por um lado, a data escolhida para implementação e divulgação das novas políticas condiz com os tempos do processo eleitoral brasileiro regulado por legislação federal; por outro, essas manifestações políticas nas redes não dependem do marco temporal institucional das campanhas – ocorrendo inevitavelmente antes, durante e depois da votação. Ainda, o anúncio feito pela empresa não deixou claro sobre até quando essas políticas relativas ao pleito de 2022 poderiam ser aplicadas, o que gera questionamentos sobre a extraordinariedade dessas medidas e sobre seus períodos de vigência.
Essas lacunas evidenciam que, por mais que as novas normas auxiliem na manutenção de um debate público eleitoral mais íntegro, uma série de dinâmicas não possuem previsão nas políticas. Por esse motivo, foram apresentadas as seguintes recomendações à Meta:
- Elaboração de uma política de integridade cívica e democrática que se desdobraria em dois ramos: (i) o primeiro que lidaria com a proteção mais ampla dos processos democráticos, levando em consideração que o funcionamento da democracia não se restringe ao período eleitoral e (ii) o segundo, subsidiário, que seria circunscrito a um recorte temporal do período eleitoral, abarcando conteúdos potencialmente violadores próprios desta temporalidade e que possuiria “intervalos de amortecimento” para lidar com marcos fáticos e institucionais relevantes que se colocam poucos meses antes ou depois do período eleitoral oficial.
- Em razão das graves agressões às instituições democráticas que ocorreram recentemente, a política deveria ter um olhar mais atento para conteúdos de incitação de insurreição ou rompimento com o processo democrático. Nesse ponto, é necessário que se compreenda que as dinâmicas online estão diretamente relacionadas com as dinâmicas offline, em um processo de afinidade e reforço. Por essa razão, as regras da política devem se dedicar a interromper fenômenos online quando as dinâmicas offline tiverem o potencial de atingir valores protegidos, como a integridade física de pessoas e a integridade de processos democráticos, a partir de critérios de como e quando cortar o circuito.
- No quesito da liberdade de expressão, é necessário que a política tome cuidado com a exclusão de discursos meramente descontentes quanto ao resultado eleitoral. Para isso, a existência de regras e definições explícitas sobre discursos democráticos, com sanções específicas e gradativas de acordo com a gravidade da situação apresentada e o risco que representa ao contexto político local são possíveis soluções para garantir o direito à liberdade de expressão de usuárias(os).
- A gradação das sanções, inclusive, permitiria que, em casos mais graves, conteúdos fossem removidos e, em outros, fosse apenas realizada a inserção de rótulos e avisos. Essa gradação possibilitaria, ainda, a manutenção de interesses públicos, limítrofes às políticas da plataforma, no ar, sendo removidos apenas em casos que representassem ameaças de violência ou à integridade de processos eleitorais ou democráticos de uma maneira mais ampla.
- A elaboração de escalas de risco e proximidade com um possível cenário de insurreição e rompimento com a ordem democrática, com o auxílio de observadores locais, e o treinamento coerente com esses parâmetros para sistemas e moderadoras(es) de conteúdo são medidas que podem auxiliar na diferenciação entre conteúdos de “organização política legítima” (“legitimate political organizing”) e de “ação coordenada nociva” (“harmful coordinated action”).
- Por fim, a política também precisa produzir definições operacionais de “insurreição” e “rompimento à ordem democrática” que, no limite, vão explicitar escolhas políticas e valores de uma empresa como a Meta.
Entendendo que a integridade de processos democráticos precisa ser levada a sério enquanto valor a ser protegido pelas políticas de conteúdo da Meta tanto quanto a integridade física de pessoas, é necessário reconhecer que ameaças de rompimentos da ordem democrática podem até mesmo ser realizadas sem danos físicos severos a pessoas e com aparência de normalidade formal. Sabe-se, também, que essa situação representa um desafio para a plataforma, uma vez que envolve escolhas políticas e éticas sobre o que é golpe, insurreição e ordem democrática.
Leia a contribuição na íntegra em português.
Este é o quinto caso do Oversight Board em que o InternetLab intervém; antes disso, enviamos contribuições em 2020 (primeiro caso brasileiro), em 2021 (sobre política de líderes políticos e desinformação relativa ao combate à pandemia) e em 2022 (sobre casos de identidade de gênero e nudez).