Neutralidade da rede: o debate continua
No dia 27 de janeiro deste ano, o Ministério de Justiça lançou a segunda fase do debate público sobre o decreto de regulamentação do Marco Civil da Internet.
Nesta segunda fase, os participantes são convidados a opinar sobre uma minuta do decreto (ou seja, sobre um texto preliminar sugerido pelo Ministério da Justiça) elaborada a partir dos mais de 1200 comentários inseridos durante a primeira fase. O debate ainda gira em torno sobre como cumprir as obrigações e regras gerais estabelecidas no Marco Civil sobre neutralidade de rede, privacidade e guarda de registros.
O InternetLab elaborou um mapeamento de todas as participações da primeira fase. Nossa ideia foi explicar o que estava em jogo e quais alternativas estavam sendo propostas por diferentes participantes. A partir deste trabalho podemos, neste momento, analisar quais foram as escolhas feitas pelo Ministério da Justiça no texto disponibilizado e, assim, refletir sobre por onde continuarão as polêmicas e debates que já tomaram conta da primeira fase. O primeiro assunto que trataremos é o da neutralidade da rede.
Neutralidade de Rede: exceções, fiscalização e zero rating
A aprovação da regra de neutralidade da rede em lei no Marco Civil da Internet é vista por muitos como um grande passo. No entanto, o debate sobre a aplicação desta regra foi controverso durante a primeira fase, em especial quando o assunto foi a determinação de como definir as suas exceções, de como fiscalizar seu cumprimento e, finalmente, se planos de acesso grátis para determinados aplicativos (que fazem com que o acesso a estes apps não consuma a franquia de dados dos usuários) – os planos de zero rating – estão proibidos. A controvérsia foi acentuada entre participantes que representavam empresas prestadoras de serviços de telecomunicações e entidades da sociedade civil organizada.Dependendo da questão do debate foi notada participação de acadêmicos e outros atores de forma menos conflitiva.
As duas exceções à neutralidade de rede
Durante a primeira fase do debate notou-se conflito de argumentos envolvendo entre as posições dos participantes neste assunto. De um lado empresas de telecomunicações e suas associações representativas advogaram por uma maior liberdade no gerenciamento de rede, do outro cidadãos, associações de defesa de direitos coletivos e alguns acadêmicos pediram por regras mais restritas de gerenciamento diante da ameaça de esvaziamento do conteúdo da regra da neutralidade.
As duas hipóteses de exceção à neutralidade de rede, ou seja, situações nas quais é permitido tratar diferentemente pacotes de dados que trafegam pela Internet, já são elencadas no Marco Civil da Internet (artigo 9º, parágrafo 1º): (i) requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações e (ii) priorização de serviços de emergência. A tarefa do decreto que está sendo discutido é, portanto, explicar e definir tais exceções, escritas em termos amplos.
Primeira exceção à regra da neutralidade: requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequado dos serviços e aplicações
A primeira exceção atende à uma necessidade cotidiana: realizar certo nível de gerenciamento de tráfego dos pacotes de dados que transitam pela rede para garantir o seu funcionamento. Este gerenciamento possibilita, por exemplo, que as empresas controladoras da infraestrutura de Internet garantam uma conectividade mínima aos seus clientes em casos de congestão na rede ou, ainda, coibir problemas de segurança como “ataques de negação de serviço”, quando existe uma sobrecarga intencional no tráfego com alguma finalidade.
Enquanto o setor empresarial de telecomunicações defendeu a adoção de princípios que pudessem balizar a fiscalização, entidades da sociedade civil organizada pediram que o decreto trouxesse um “rol taxativo” de condutas permitidas, ou seja, que ele autorizasse expressamente o que estaria permitido. A minuta colocada em debate pelo Ministério da Justiça é uma mistura das duas coisas – ela estabelece taxativamente situações nas quais a exceção existe, mas de forma genérica.
Esta crítica quanto ao caráter genérico das hipóteses de “requisitos técnicos indispensáveis” não deve ser unânime, mas já apareceu publicamente. Em recente debate na Campus Party 2016, Veridiana Alimonti, do Coletivo Intervozes, defendeu que a hipótese de exceção no caso “tratamento de questões imprescindíveis para a adequada fruição das aplicações, tendo em vista a garantia da qualidade de experiência do usuário” presente na minuta seria aberta e genérica demais, abrindo espaço para violação da neutralidade da rede – posição que já foi endossada nesta segunda fase por participantes.
Segunda exceção à regra da neutralidade: priorização de serviços de emergência
A segunda hipótese de exceção da neutralidade de rede não foi alvo de grande controvérsia na plataforma de consulta durante a primeira fase. No entanto, participantes destacaram algumas diretrizes que deveriam ser seguidas pela regulamentação, dentre elas, o melhor detalhamento do que seria um serviço de emergência e a vedação de priorização de serviço de emergência mediante pagamento.
O decreto aborda a questão e estabelece as hipóteses nas quais um serviço de comunicação será considerado “de emergência”: “comunicações destinadas aos prestadores dos serviços de emergência, conforme previsto na regulamentação da ANATEL; ou comunicações necessárias para informar a população em situações de risco de desastre, de emergência ou de estado de calamidade pública”.
Quem deve fiscalizar a regra da neutralidade de rede?
A fiscalização da regra da neutralidade de rede gerou grande debate na primeira fase da consulta. A polêmica girou em torno da centralidade da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Enquanto o setor empresarial de telecomunicações e alguns cidadãos defenderam a proeminência da ANATEL para a fiscalização da neutralidade, organizações da sociedade civil sugeriram a construção de um sistema “pluri-institucional” que abarcasse a agência, mas contasse também com a participação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) e do Comitê Gestor da Internet no Brasil, o CGI.br. O argumento foi de que as competências legais e administrativas da ANATEL não seriam suficientes para dar cabo da função de fiscalizar a neutralidade do ponto de vista dos direitos coletivos.
A minuta do Ministério da Justiça não acolheu esta sugestão e deixou a fiscalização à cabo da ANATEL, mas reservou uma função ao CGI.br de dar diretrizes, especialmente pelo Comitê ter sido citado no Marco Civil como necessário participante desse processo. O artigo 7º, inciso I, também institui o cumprimento das normas da Anatel como requisito para discriminação decorrente da priorização de serviços de emergência.
Ao mesmo tempo, os artigos 16 e 17 do decreto deixam clara a abertura para a atuação da SENACON e do CADE, dentro de seus respectivos escopos de atuação. A atuação destes órgãos não é, no entanto, específica quanto a fiscalização do cumprimento da neutralidade de rede.
Planos de acesso grátis a aplicativos (Zero rating)
Apesar da complexidade técnica do assunto, os planos de zero rating causaram polêmica na primeira fase: o tema foi o mais abordado pelos participantes. Um dos fatores é a potencial influência deste tipo de plano no âmbito concorrencial, no desenvolvimento de negócios ligados à Internet e na própria forma com que a rede funciona e é administrada. É um tema que dividiu as opiniões.
O debate girou em torno de duas estratégias para regular os planos de acesso grátis a aplicativos. Uma das opções, sugerida por grupos ligados a empresas de telecomunicação, apontava para uma avaliação a posteriori de cada tipo de plano, ou seja, eventuais danos à concorrência ou ao consumidor seriam posteriormente tratados pelo CADE ou pelo Judiciário. O argumento seria de que a regulamentação não deveria restringir a liberdade econômica das empresas de oferecerem planos ou ofertas a seus consumidores no âmbito comercial. Segundo estes participantes a diferenciação não aconteceria no âmbito do tráfego de pacotes de dados, mas na esfera comercial.
Já a segunda posição, apoiada por organizações acadêmicas e da sociedade civil organizada, argumentava no sentido de que este tipo de plano deveria ser proibido pelo decreto, posto que representa uma violação da neutralidade de rede. Tais participantes defenderam que planos como estes precisavam ser endereçados imediatamente e a priori, pois já estavam sendo oferecidos no mercado e constituiriam uma brecha para a desfiguração da regra da neutralidade no futuro.
Apesar do intenso debate ocorrido, o decreto não trata especificamente dos planos de zero rating. Se a minuta vingar a definição última se a prática está proibida ou permitida vai ao Judiciário e para o CADE (se suscitada questão sobre conduta anticoncorrencial).
Pode-se argumentar que o decreto, ao melhor delimitar as únicas hipóteses de exceção à neutralidade de rede (artigos 5º e 7º) e se referir à preservação da internet única e de natureza pública (parágrafo único, artigo 4º e artigo 8º), aponta para a proibição de antemão de planos de acesso grátis a aplicativos. Nesta mesma linha, aliás, ressalta-se a ênfase dada no artigo 5º do decreto ao inciso IV do artigo 9º do Marco Civil que trata da vedação de práticas comerciais discriminatórios e anticoncorrenciais.
No entanto, o artigo 8º do decreto, relativo a acordos entre provedores de conexão e de aplicação, veda somente acordos que importem na priorização discriminatória de pacotes de dados. Nesse sentido, há poderia haver espaço para a argumentação, já exposta na primeira fase da consulta, de que a vedação recairia apenas sob a discriminação relacionadas ao tráfego de dados e não discriminação dos preços dos pacotes. Desta forma, para os defensores desta posição, os planos de acesso grátis a aplicativos não seriam, a princípio, uma violação da neutralidade de rede.
Por Francisco Brito Cruz e Jonas Coelho Marchezan