InternetLab Reporta – Direito Autoral no Ambiente Digital n. 03
Assim como na semana passada, não foi inserido, nos últimos dias, um número expressivo de contribuições de caráter mais técnico, ou discutindo detidamente o tema da Instrução Normativa, na plataforma de consulta. Por outro lado, têm sido publicadas manifestações em outros espaços. Principalmente por compreendermos que o Ministério da Cultura tem estabelecido uma interlocução direta com os interessados no problema – de plataformas a associações de autores -, vale abordar essas contribuições. Neste boletim, assim, trataremos de duas questões. A primeira, que tem surgido com recorrência na própria plataforma de consulta, é a alegação de que o que a Instrução Normativa propõe é algo absolutamente distinto de como a questão vem sendo regulada em outros países. A segunda, que tem aparecido como central nas contribuições fora da plataforma, é a interpretação do conceito de execução pública musical a partir da interatividade que se permite ao usuário em cada modelo.
A jaboticaba brasileira
Distintos comentários, na plataforma, apontam para a ideia de que não existiria em nenhum lugar, além do Brasil, um órgão central a cobrar e distribuir royalties por serviços de streaming como o Spotify ou o Deezer, ou mesmo a regulação dessa atividade. Assim, por exemplo, Emerson Pereira Bom (sociedade civil) questionou-se “por que o Brasil tende a querer regulamentar tudo, basicamente tudo que é livre? Não há essa regulamentação. Parem de querer controlar tudo”; Mauricio Giorgio Riedel Ghigonetto (“outro tipo de usuário”) argumentou que “o estado brasileiro deveria parar de querer se intrometer em assuntos privados que já estão equacionados. Claramente temos uma postura arrecadatória sem qualquer sentido. Vamos mais uma vez na contramão”; e Robson Ricardo Leite de Silva (sociedade civil) afirmou que “Não existe, nem nunca existiu a necessidade de incluir uma nova taxa, que será, como tudo neste país, paga pelo usuário final”.
Diante de comentários nesse sentido, é de se questionar: o que o governo propõe, ou seja, que o ECAD seja intitulado a fazer a operação de cobrança e distribuição de royalties, é mesmo uma jaboticaba, ou seja, algo que só existiria aqui?
Comentário: Pedro Augusto Francisco, do Centro de Tecnologia e Sociedade, da Fundação Getúlio Vargas
Se observarmos as críticas que vem sendo feitas à instrução normativa apresentada pelo MinC – que estabelece diretrizes sobre a cobrança de direitos autorais no ambiente digital – veremos que muitas delas acusam a iniciativa de implementar um mecanismo que seria exclusividade brasileira: a cobrança dos serviços de internet por parte de sociedades de gestão coletiva de direitos de autor.
Trata-se de uma crítica equivocada. Países como a França e a Alemanha já possuem esse tipo de cobrança há alguns anos. Na França, a SACEM (Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música) – a mais antiga associação de gestão coletiva do mundo – possui regras para cobrar e distribuir os royalties advindos de serviços como Spotify e Deezer e YouTube. Para operar naquele país, as plataformas online precisam obter a licença junto à SACEM e pagar os valores devidos. Na Alemanha, a GEMA (Sociedade para Execução Musical e Direitos de Reprodução Mecânica), também determina que os serviços digitais funcionem sob licença, bem como opera como intermediária nos pagamentos de direitos autorais. A GEMA, inclusive, é notória por bloquear a veiculação de material com música para os quais o YouTube não possui licença de utilização. Isso passou a acontecer em 2009, quando a plataforma não renovou suas negociações com a associação. O que o MinC quer fazer aqui é implementar um modelo semelhante, colocando o ECAD como instituição responsável por arrecadar o valor devido pelas plataformas e distribuir para os titulares de direitos de autor. Isso deverá ser feito respeitando regras claras e sendo transparente.
Por fim, vale dizer que associações como a SACEM, a GEMA e o ECAD não são órgãos dos governos francês, alemão e brasileiro. São instituições independentes e de direito privado, com o papel de representar os detentores de direitos de autor junto aos usuários de obras protegidas. Pensar que a ação desses órgãos representa uma intervenção do governo em assuntos de ordem privada é outro equívoco que precisa ser evitado.
Que existam modelos semelhantes ao que propõe a IN fora do Brasil evidentemente não significa que devamos optar por esse modelo no Brasil necessariamente; esclarecer essa questão, entretanto, parece dar mais clareza para avançarmos na avaliação da proposta do MinC, tendo em vista as opções em jogo. Isso permite, também, que a opção pelo ECAD possa ser comparada com as opções que outros países fazem por outras organizações, em suas vantagens e desvantagens, comparativamente.
O serviço de música ser ou não interativo é uma questão central?
Das contribuições feitas fora do ambiente de consulta propriamente dito, duas foram significativas: a do produtor musical Carlos Mills, que divulgou um texto de autoria própria na plataforma de consulta, e a da Associação Procure Saber, que postou uma manifestação em sua página no Facebook. As manifestações são, em muitos sentidos, opostas; destrincharemos aqui um ponto de dissenso que nos parece central, para tratar de outras questões trazidas pelas contribuições nas próximas semanas.
Como afirmamos, a Instrução Normativa sob consulta estabelece que os serviços de streaming interativo,ou seja, plataformas como Deezer e Spotify, praticariam atividades que se encaixariam no conceito de execução pública – e que o ECAD seria responsável pela cobrança de royalties nesse caso. A interatividade é caracterizada pelo amplo acesso pelo usuário a um catálogo, e poder escolher livremente aquilo que quer escutar, no momento que deseja. É um conceito usado em oposição a modalidades como a rádio e a rádio online, que apresentam ao usuário uma programação fechada.
O conceito de interatividade tem sido central nas discussões sobre o conceito de execução pública, tanto no mercado quanto no Judiciário brasileiro. É que, até o momento, tem sido o critério para diferenciar as plataformas de streaming que pagam ao ECAD e as que não (ou seja, pagam a outras empresas e instituições).
Carlos Mills, em sua contribuição, argumenta que o o uso de música em plataformas de streaming interativo não poderia ser considerado execução pública, visto que:
se formos interpretar conceitos jurídicos antigos perante a nova realidade digital, perceberemos um paralelo direto entre a experiência de ouvir um CD e aquela de poder escolher a música que se quer ouvir, na hora e no local desejados, de forma individual (streaming interativo). De outro lado, não se conhece no Brasil nenhum caso em que o ouvinte final possa escolher de forma individual especificamente aquilo que deseja ouvir, nas diversas modalidades existentes enquadradas como execução pública.
Já a Associação Procure Saber (APS) argumentou, em sentido contrário, que a interatividade não seria o divisor de águas entre o que deve e o que não deve ser considerado execução pública, pela ausência de previsão legal nesse sentido. Alegou que a diferenciação existiria na legislação norte-americana, mas não na brasileira, e que a interatividade seria nada mais que um resultado da evolução tecnológica, ou ainda uma mudança apenas “na tecnologia empregada”, que não afetaria a compreensão jurídica dos usos já existentes:
Na era do rádio, a opção de interatividade que havia era apenas a mudança de estação. Hoje, graças aos processos tecnológicos, o poder de interagir, de escolher, pode ser exercido em um mesmo veículo de comunicação. (…)
O que acontece nos serviços de streaming é que o acesso é não simultâneo: ele ocorre em momentos diferentes, graças à tecnologia. Se alcançam um número considerável de pessoas, de forma sucessiva, isso se deve à evolução natural de serviços que têm as mesmas finalidades que a transmissão e a radiodifusão.
Na semana que vem, abordaremos outros dos pontos de dissenso entre essas e outras contribuições.
Por Juliana Pacetta Ruiz e Mariana Giorgetti Valente