Entenda a consulta pública do governo sobre Direito Autoral no ambiente digital

InternetLab Reporta 18.02.2016 por mrnvlnt

Na última segunda-feira, dia 15/02, o Ministério da Cultura deu início a uma nova consulta pública sobre direitos autorais. Desta vez, para promover a discussão sobre uma Instrução Normativa, cujo texto já foi proposto, para regulamentar a cobrança e distribuição de direitos autorais no ambiente digital.

 

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Contexto geral e antecedentes da consulta pública

É importante diferenciar esse processo da consulta pública pela reforma da Lei de Direitos Autorais que o Ministério da Cultura promoveu em 2010, após quase três anos de debates em seminários. O projeto de reforma resultante daquele processo foi engavetado, nas sucessivas mudanças de pessoal ocorridas no órgão desde então – uma explicação de como esse processo desandou pode ser lida aqui. Em 2013, parte daquela proposta foi contemplada em uma reforma da gestão coletiva de direitos autorais, pela Lei n. 12.853. Com essa reforma, estabeleceu-se novamente uma supervisão do Ministério da Cultura sobre as associações que fazem a gestão coletiva de direitos autorais no Brasil, ou seja, cobram e distribuem valores relativos a direitos autorais para um conjunto de autores e detentores de direitos conexos.

A principal consequência dessa reforma é que o ECAD passou a funcionar sob supervisão novamente, como ocorria quando da sua criação (prevista na Lei de Direitos Autorais anterior, a de 1973) até 1990, quando o Ministério da Cultura foi temporariamente extinto – e, com ele, o CNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral), que era responsável pelo estabelecimento de regras e supervisão da atividade de gestão coletiva. Mesmo depois de restabelecido o MinC, o CNDA não foi reativado. De 1990 até 2013, assim, o ECAD continuou atuando sob o regime de um monopólio legal (por força da redação antiga do artigo 99 da Lei n. 9.610/98), mas sem supervisão. Vale lembrar que, no regime brasileiro, o ECAD é uma espécie de organização guarda-chuva, que congrega as associações às quais os detentores de direitos de autor e conexos se associam.

As associações de autores propuseram no STF duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a lei que reformou o sistema de gestão coletiva – e, apesar de ter realizado audiência pública sobre o assunto em 2014, o STF ainda não decidiu. Enquanto isso, o Ministério da Cultura editou normas regulamentando a lei e, portanto estabelecendo detalhes para o novo regramento. A Instrução Normativa agora em consulta demonstra o entendimento do Ministério da Cultura sobre seu papel, com a nova lei.

Um ponto importante é que uma Instrução Normativa não é uma lei – é um ato administrativo, complementar de leis ou de decretos, e que não pode ir além ou modificar a norma que vem complementar. Assim, não estamos tratando nesse caso propriamente de uma reforma legal.

 

O problema do direito autoral nos serviços digitais

Se há certa instabilidade quanto à permanência da lei, há hoje ainda mais instabilidade no campo do direito autoral sobre os serviços digitais de música. Vale esclarecer que serviços de música pagos como o Spotify e o Deezer, e “gratuitos” (baseados em publicidade) como o YouTube, já pagam direito autoral – com suas receitas, remuneram os autores da composição, intérpretes, produtores fonográficos e quem quer que os represente, ou seja, editoras e gravadoras. Desde que eles entraram no Brasil, no entanto, vêm persistindo conflitos sobre quem tem a prerrogativa de arrecadar esses valores e distribuir a quem de direito. O ECAD, representante do sistema de gestão coletiva que vem se desenvolvendo no país desde a década de 30, tentou estabelecer-se como legitimado, mas encontrou uma série de oposições, ora dos serviços, ora do Judiciário, ora de novas organizações que vêm ganhando espaço com o desenvolvimento desse mercado digital no Brasil. Algumas decisões de Tribunais de Justiça estaduais vinham afastando a prerrogativa do ECAD em alguns casos, mas a questão só chegou ao STJ no ano passado – e, em dezembro, o Tribunal realizou uma audiência pública para debater o assunto.

Do ponto de vista jurídico, a celeuma gira basicamente em torno de um conceito: o de execução pública musical. É que o monopólio legal que o ECAD detém por lei é somente em relação a esse direito, e não em relação a outros, como o de reprodução ou de distribuição. Portanto, a questão é definir se uma utilização de música em um determinado serviço se enquadra no conceito de execução pública da Lei de Direitos Autorais; parece simples, mas não é, já que o texto nesse caso é bastante confuso e circular:

Art. 68. (…)

§2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.

§3º Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.

 

O que pretende a Instrução Normativa do MinC?

O que a Instrução Normativa sob consulta faz é estabelecer um regime geral de habilitação, no Ministério, de associações para cobrança e distribuição de direitos autorais sobre vários tipos de obra.

Em relação à música, que provavelmente será a parte mais polêmica da discussão, a IN estabelece que o direito de execução pública se aplica “aos serviços em que há a utilização de obras musicais, litero-musicais e fonogramas por meio de transmissão com finalidade de fruição da obra pelo consumidor, sem transferência de posse ou propriedade” (art. 6o, §1º), e ainda reafirma que o ECAD pode cobrar desses serviços  (§1º). Ou seja, serviços de streaming, os interativos (como o Spotify e o YouTube) ou não (como rádios online), passariam a pagar os direitos ao ECAD, em vez de a outros atores, como vem ocorrendo.

Quando a Instrução Normativa se refere a usuários, está falando de “operadores de serviços e negócios no ambiente digital que utilizem conteúdo protegido por direito de autor e direitos conexos” (art. 1º, § 2º, II), ou seja, do YouTube, do Spotify, de portais que contenham serviços de música; a IN não regula diretamente a utilização de música pelo consumidor. Ou seja, o fato de eu ouvir o Spotify no meu fone de ouvido ou utilizá-lo na minha atividade de DJ não entram nessa discussão – esse tipo de uso continua regulado pelas regras que já existem de gestão coletiva.

 

O governo quer impor um tributo sobre os serviços de música?

Vale reforçar, tendo em vista algumas matérias e comentários bastante desinformativos sobre a consulta, que aquilo que o ECAD cobra não é nem nunca foi um tributo, ou seja, não é imposto nem taxa. O ECAD não é um órgão governamental: é uma associação privada, que agrega as várias associações privadas de detentores de direitos autorais, embora tenha previsão legal. A Lei de Direitos Autorais brasileira estabelece que qualquer utilização de obra intelectual protegida (não estamos falando, então, de obras em domínio público ou de utilizações protegidas por limitações e exceções, o nosso “equivalente” ao fair use estadunidense) deve ser previamente autorizada pelos detentores dos direitos; essas associações são organizações dos detentores para a cobrança e distribuição dos valores. Do total arrecadado, elas retêm taxas de administração, que devem servir à manutenção de suas atividades; mesmo com a supervisão estatal estabelecida pela Lei n. 12.853/13, esses valores não passam pelo Estado brasileiro.

Ou seja, estabelecer que é o ECAD ou é outra associação ou são as próprias gravadoras que devem cobrar de um serviço muda significativamente as regras do jogo, mas em hipótese alguma significa a criação de um novo imposto. Também não se está estabelecendo que o usuário individual de música terá de pagar nada ao governo ou às associações, embora um ou outro modelo possam ter diferentes impactos para o usuário final em termos de preços, o que mereceria uma análise mais profunda.

 

Como participar da consulta pública

Para participar dos debates, é necessário cadastrar-se na plataforma criada pela Diretoria de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura.

Munidos desse cadastro, cidadãos, empresas e entidades da sociedade civil estão convidados a comentar em cada um dos dispositivos da IN. Também é possível sugerir a inclusão de novos dispositivos ou fazer comentários gerais. A consulta pública vai até o dia 30 de março de 2016.

 

InternetLab reporta: nosso trabalho nas próximas semanas

No modelo do que desenvolvemos em 2015 durante as consultas públicas sobre o decreto regulamentador do Marco Civil e sobre o anteprojeto de Lei de Dados Pessoais, o InternetLab promoverá um acompanhamento dos debates, por meio da publicação de boletins semanais, em português e inglês.

Nosso objetivo é, entendendo que a academia tem um papel a cumprir no debate de políticas públicas, dar suporte e visibilidade a esse processo participativo e, utilizando-nos de sistematização de argumentos, pesquisa e consultas com outros pesquisadores e especialistas, esclarecer pontos obscuros e auxiliar na inclusão de novos interessados no debate.
Observação: O Ministério da Cultura lançou, ao mesmo tempo, uma outra consulta pública sobre as obrigações dos usuários no que se refere à execução pública de obras e fonogramas inseridos em obras e outras produções audiovisuais; esse tema também é controverso e merece atenção, mas não acompanharemos, por afinidade temática.

 

Por Mariana Giorgetti Valente

Colaborou Jonas Coelho Marchezan

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