“Gorda”, “porca”, “burra”: candidatas recebem mais de 40 xingamentos por dia no Twitter durante campanha eleitoral
Atenção: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la.
Originalmente publicado por Jamile Santana na Revista AzMina.
No dia 17 de outubro, um internauta decide postar no Twitter uma foto da candidata à prefeitura de São Paulo pelo PSL, Joice Hasselmann, apontando duas armas para a câmera. Junto à imagem, escreve: “(…) Taí alguém que não poderia bem (sic) se quer chegar perto de uma arma de fogo. Louca não pode ter arma de fogo, quem deu CR pra (sic) essa psicopata da @joicehasselmann”. Do outro lado do espectro político, Manuela D’Ávila, candidata a prefeitura de Porto Alegre pelo PCdoB, também recebe ofensas. “Recadinho aos Porto Alegrenses: Em 2018, nós apelamos pra que a galera do RN, não elegesse a comunista Fátima Bezerra, mas eles elegeram essa ‘vaca’ mesmo assim (…) Agora nós apelamos vcs de P.A: “Por favor, não elejam essa hacker @ManuelaDavila. É bandida!..”.
As duas postagens têm hoje quase 100 likes ou retuítes cada uma, e são exemplos de como a violência política e o discurso sexista contra as mulheres se encontram e se espalham nas redes durante as eleições – sem escolher partido ou espectro político. Elas e outras candidatas à prefeitura têm recebido uma média de 40 tuítes diários com ofensas. No geral, os xingamentos faziam alusões aos corpos das candidatas, à intelectualidade, à saúde mental ou aos aspectos morais de suas vidas. Muitos são misóginos, racistas, lesbo, trans e homofóbicos.
Esses e outros tuítes ofensivos foram identificados pelo MonitorA, projeto da Revista AzMina junto ao InternetLab, que coleta e analisa comentários direcionados a candidatas de todos os espectros políticos para compreender as dinâmicas da violência durante as eleições. No primeiro mês de campanha, entre 27 de setembro e 27 de outubro, foram coletados 93.335 tuítes que citam as 123 candidatas monitoradas na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Para entender se as postagens eram violentas, uma linguista preparou um filtro de termos de cunho misógino, racista e ofensivo. E ele mostrou que 11% dos tuítes tinham algum teor agressivo. Dentre os que tinham algum tipo de engajamento (like e/o retweet), 1.261 eram xingamentos direcionados diretamente às candidatas.
As mais atacadas foram as candidatas à prefeitura de São Paulo, Joice Hasselmann (PSDB); de Porto Alegre, Manuela D`Ávila (PCdoB); e do Rio de Janeiro, Benedita da Silva (PT). Os termos ofensivos identificados foram classificados dentro de categorias predominantes, levando em conta o contexto em que estavam inseridos: discursos sobre os atributos físicos das candidatas (como roupas que usavam nas fotos, corte de cabelo ou aparência), assédio moral, sexual e intelectual, descrédito, gordofobia, transfobia, racismo. Isso mostra que além de serem atacadas por serem mulheres, a violência política direcionada a mulher é sexista em seus xingamentos e no contexto em que esses ataques são feitos.
No caso de Joice Hasselmann, candidata que está no topo do ranking entre as mais ofendidas identificadas pelo estudo, a gordofobia é o principal elemento dos xingamentos. Apesar de grande parte dos ataques serem motivados pela mudança na relação com a família do presidente Jair Bolsonaro, de quem já foi bastante próxima, os xingamentos a atacam pelos seus atributos como mulher.
“Quando os ataques são feitos às mulheres, em geral é feito por uma questão física. Não há ataques falando da minha qualidade legislativa. É muito ruim para mim como mulher e como candidata ver esses ataques. E as pessoas que vão me defender nas redes também são atacadas. A gente precisa enfrentar, inclusive com legislação para punir esse tipo de violência”, considerou Joice.
Já no caso da Manuela D’Ávila, boa parte dos tuítes usam o termo “comunista” de forma pejorativa, para tentar descredibilizar intelectualmente a candidata, o que acontece frequentemente na violência política voltada para mulheres. Ela foi bastante atacada após o lançamento das fotos oficiais da campanha, em que aparece com roupas mais formais que o habitual. Foi chamada de “comunista de boutique”, “comunista fake” e “comunista fajuta”. “Os outros candidatos devem ser muito ruins para a comunistazinha estar liderando as pesquisas. @ManuelaDavila”. Outros, no entanto, são mais agressivos: “Oi @ManuelaDavila ! Que sua alma ferva no inferno sua p*ta safada mamadora de r*la”. O tuíte foi excluído desde sua postagem.
“São pelo menos cinco anos de ataques, desde quando eu ainda gestava a Laura e criaram a primeira fake news que dizia que eu fazia o enxoval nos Estados Unidos. desde então, de maneira permanente, eles destroem minha imagem e fazem com que eu seja agredida, verbal, fisicamente e nas redes. A violência nas redes, no meu caso, saiu para a rua. A primeira agressão que minha filha sofreu foi em outubro de 2015, por uma mulher que deu tapas no sling que eu usava e minha filha estava lá dentro. Esse estudo mostra a intensidade dos ataques.”, disse Manuela em entrevista à Revista AzMina.
Manuela conta que a violência impacta sua vida de maneira muito direta. “Onde eu vou, como eu vou, como me preparo para ir. A rotina com minha filha, meu marido e enteado foram transformados. A campanha também. Gastamos metade do tempo desmentindo fakenews. É triste mas também mudou a minha militância. Fez eu me conectar com outras mulheres, escrever um livro e criar um instituto. Minha vida toda foi pautada por isso. Depois de 2018 criamos o “E se você?” que combate redes de ódio e fakenews. Pra mim virou uma missão de todos nós que defendemos a democracia”.
Benedita da Silva, candidata a prefeitura do Rio de Janeiro pelo PT, sofreu ataques racistas e também de cunho sexual. “Meta um processo no rabo da @dasilvabenedita”, escreveu um usuário. O conteúdo foi removido. Ela também foi referenciada algumas vezes como “amante” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“A internet é um espaço de contradição porque potencializa a chance de mais mulheres serem ouvidas, dando espaço para as campanhas acontecerem, mas também permite que uma estrutura se organize aproveitando-se da sensação de anonimato, possibilitando essas violências”, destacou Fernanda K. Martins, antropóloga e coordenadora da área de desigualdades e identidades do InternetLab. Ainda segundo ela, a violência de gênero é histórica e estrutural. “A internet não criou esse tipo de violência, mas recriou esses espaços de violência que já existiam na sociedade”, detalha.
Um exemplo de como essa violência se dá fora da internet é o caso de Renata Castro, que, segundo noticiado pelo UOL, era cabo eleitoral da família Cazzolino, tradicional na política de Magé, RJ. Ela foi assassinada na porta de casa, com 14 tiros. A vítima era conhecida na cidade por seus vídeos com acusações contra a atual prefeitura. Até a publicação desta reportagem, ninguém havia sido preso pelo crime. Em agosto, a pré-candidata a vereadora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Sandra Silva, também foi assassinada dentro de casa. O suspeito foi preso no começo de outubro.
Termos mais usados
Identificamos nos tuítes com xingamentos direcionados às candidatas 324 termos ofensivos diferentes. Além de “comunista” (usado de forma pejorativa e não como definição de um posicionamento político) e “peppa”, que foram os termos mais usados, e suas variações como “comunista imunda”, “comunista safada”, “peppa ridícula”, etc, outras palavras aparecem com frequência como “burra”, “hipócrita”, “porca”, “falsa”, “ridícula”, “vagabunda”, “maconheira” e “mentirosa”. No caso da candidata Erika Hilton, co-deputada estadual pela Bancada Ativista que é uma mulher trans, alguns tuítes foram transfóbicos. “É difícil conversar com traveco, não tem propostas concretas, só conversa mole! Dá mais a impressão que está nesta só para ganhar um salário as custas dos trouxas com a ladainha LGBT. Não confiem neste estrume de ser humano!”.
“Nos tuítes, pode-se observar que, apesar do fato de todas as candidatas terem sido alvo de discursos que traziam à tona hierarquias permeadas pela desigualdade de gênero, cada uma delas recebeu xingamentos que destacavam as características que as conectam com identidades ou nichos políticos específicos. Por essa razão, podemos afirmar que as ofensas não estão relacionadas somente ao fato de as candidatas serem mulheres, há uma articulação entre as desigualdades de gênero, raça, sexualidade e ideologia política”, afirma Fernanda.
Invariavelmente, as mulheres também são assediadas sexualmente em suas redes sociais. “Luta contra minha p*ca”, disse um usuário a Carla Ayres, candidata a vereadora pelo PT em Florianópolis. Carla é lésbica e também já sofreu ataques lesbofóbicos em outras redes sociais.
Impacto
Para a professora e ativista, co-diretora do #MeRepresenta, integrante do #VoteLGBT e da Rede Feminista de Juristas (deFEMde), Evorah Cardoso, muito usuários acreditam que ofender outras pessoas nas redes sociais é ter liberdade de expressão. “Acredita-se que a internet é um espaço livre e que há uma minimização dos efeitos dos discursos ofensivos, mas isso não é verdade. Quando uma candidatura verbaliza o ódio contra outra, há uma disseminação desse conteúdo legitimando formas de violência para a sociedade. Infla as pessoas que concordam com os ataques e isso acaba sendo reproduzido na vida real. Uma ofensa na internet não é uma simples ofensa, é um ataque que deve ser combatido”, defende.
Ainda de acordo com a professora, é preciso discutir o problema socialmente. “Todo mundo tem algum grau de responsabilidade. As candidaturas que também reproduzem discurso de ódio, as plataformas que não operam com transparência e por isso não sabemos quais conteúdos são impulsionados ou moderados, o legislativo que não cria mecanismos de controle e a Justiça Eleitoral que não se envolve apesar de ter condições de fazê-lo”.
Mariana Valente, diretora do InternetLab, lembra que discurso tóxico, discurso de ódio e posts ofensivos não são necessariamente correlatos, mas são faces de um mesmo problema e dificultam o caminho das mulheres na política. “Discurso de ódio é o discurso que inferioriza uma pessoa ou um grupo por causa de uma característica como gênero, raça ou orientação sexual. Várias das ofensas que a gente observou não contêm isso diretamente – é o caso de usar ‘comunista’ pejorativamente, por exemplo. Mas elas formam um caldo que tem como resultado, na prática, uma tentativa de inferiorização e silenciamento das candidatas por serem mulheres.“.
Enquanto mecanismos oficiais não são criados, cabe às próprias candidatas e usuários das plataformas pedir a exclusão das ofensas e também buscar proteção. “Só na semana passada tiramos 23 mil publicações da rede. Hoje estamos entrando com um pedido de medida protetiva contra pessoas que ameaçam fisicamente a mim, equipe e eleitoras”, conta Manuela Dávila.
O MonitorA é um observatório de violência política contra candidata nas redes, um projeto da Revista AzMina e do InternetLab, com parceria do Instituto Update. A ferramenta de análise de dados foi desenvolvida pelo Volt Data Lab e os glossários de termos pesquisados foi desenvolvido pela pesquisadora em discurso de ódio Yasmin Curzi.
Pelo InternetLab, o MonitorA é uma das frentes do projeto Reconhecer, Resistir e Remediar, uma parceria com a organização indiana IT for Change, financiada pelo IDRC (International Development Research Center), para pesquisar manifestações e problemas no enfrentamento ao discurso de ódio online contra mulheres no Brasil e na Índia. Ver mais sobre o projeto e suas diferentes frentes aqui.