Ilustração da advogada Silvia Chakian, uma mulher branca, de cabelos longos e castanhos. Aparece na foto sorrindo, vestida com uma camisa branca. Ao fundo, à esquerda, está escrito "entrevista com Silvia Chakian; já à direita, "Especial Discurso de Ódio.

“Existem outras formas de contenção social que não apenas a legal-penal”

A promotora de justiça Silvia Chakian analisa a noção de discurso de ódio, estabelece um panorama sobre como a justiça tratou historicamente a violência de gênero no Brasil e discorre sobre as questões que permanecem como desafios a serem enfrentados.

Especial Desigualdades e Identidades 29.09.2021 por Ester Borges e Mariana Valente

O Especial Discurso de ódio conversa com a promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo Silvia Chakian para analisar o tema sob a ótica jurídica. A também professora da Escola Superior do Ministério Público aborda os avanços do fortalecimento jurídico dos direitos das mulheres e as dificuldades ainda encontradas. Ela afirma que não basta ter uma lei que diga que é crime propagar ódio na internet contra as mulheres; é preciso definir alguns parâmetros e avançar na definição do que é discurso de ódio.

Silvia Chakian também é integrante da Promotoria Especializada de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar e da Comissão Nacional Permanente de Violência contra a Mulher (COPEVID/GNDH).

Ilustração da advogada Silvia Chakian, uma mulher branca, de cabelos longos e castanhos. Aparece na foto sorrindo, vestida com uma camisa branca. Ao fundo, à esquerda, está escrito "entrevista com Silvia Chakian; já à direita, "Especial Discurso de Ódio.
Ilustração de Silvia Chakian, por Stéphanie Pollo.

“Quando reforçamos uma posição assimétrica das mulheres em relação aos homens, criamos um terreno fértil para a violência”

Confira a entrevista na íntegra:

Você considera que na última década os direitos das mulheres no Brasil têm se fortalecido juridicamente? 

Depende do que entendemos como fortalecimento jurídico. Se for  sob o aspecto legislativo em primeiro lugar, sim, muito. Temos avanços significativos, não dá para negar isso. Acho que temos como grande marco a Lei Maria da Penha, mas não somente. 

Antes mesmo da Lei Maria da Penha, toda a questão da mudança de paradigma no trato dos crimes sexuais que deixam de ser vistos como proteção da moralidade pública dos costumes, para serem vistas sobre o prisma da defesa da dignidade, liberdade sexual, isso foi um grande avanço. A extinção das categorias de mulher “honesta” e “não honesta”, isso a gente acha que ficou lá no passado, mas foi em 2005; a mudança da proteção dos crimes não serem mais crimes contra os costumes, mas sim contra a dignidade sexual, isso foi em 2009. Então a gente ainda pode colocar nesse conjunto de mudanças recentes.

A Lei Maria da Penha sem dúvida foi a grande mudança de paradigma, o grande marco que proporcionou toda uma conscientização que mudou a história de como tratávamos a violência doméstica e familiar focada na questão individual da mulher – que sofre para ser tratada finalmente com uma questão de Estado. A lei do feminicídio, a lei da importunação sexual, que eu acho que é o grande exemplo desse amadurecimento da sociedade, que então passa a reconhecer determinadas práticas como violência, porque, é importante lembrar que a violência é uma categoria em constante transformação. E aí, finalmente, com a ideia de que isso é uma agressão sexual, o “clamor por justiça”, mas que nada mais é do que clamor por uma resposta mais adequada e aí gente tem um tipo penal.

A questão da mudança da natureza da ação penal também é fruto de um amadurecimento. Entender que a violência sexual não pode mais ser vista como um crime de vergonha, que a vítima prefira ocultar. Foi em 2018 que esses crimes passaram a ser tratados no caso de estupro, pela ação civil, pela ação penal de natureza pública incondicionada, não exigida mais aquela representação no prazo que era tão exíguo de 6 meses. Então estupro coletivo, corretivo, também é fruto desse reconhecimento maior sobre essas categorias de “violência”. E, recentemente, essa figura do crime de stalking, para nós que atuamos no sistema de justiça, foi fundamental – é um tipo penal muito importante, cada vez mais manejado. De fato, havia uma dificuldade muito grande de lidar com condutas super graves, invasivas, que amedrontam da forma como era, como contravenção penal – uma mensagem muito negativa para a sociedade de que esses comportamentos eram aceitáveis ou de menor importância. 

Nós temos visto, nessa linha do tempo, um avanço muito grande, porém, também precisamos dizer que esse avanço nem sempre vem acompanhado, no momento de aplicação das leis, com o olhar que convencionamos chamar de “perspectiva de gênero”. Então, não necessariamente as políticas de capacitação e formação desses profissionais que têm que aplicar o direito estão adequadas, muito pelo contrário. 

Existe um aprimoramento das instituições em busca da especialização, mas isso ainda está longe de ser o ideal, então a gente tem as especializações mais próximas das capitais e dos grandes centros, o que significa que quando não estamos falando de centro, Sul e Sudeste, quando vamos chegando nos interiores, observamos com mais frequência dificuldades na construção desse olhar especializado.

E acredito que seja importante, também, ressaltar esse movimento mais recente de uma busca por desnaturalização da própria essência da Lei Maria da Penha, que nunca se prestou a ser positivista. Que, muito pelo contrário, sempre teve esse olhar para as políticas públicas, para o dever de diligência do Estado, responsabilização do Estado nas três esferas de poder e responsabilidade das instituições. 

Vemos um discurso e apresentação inclusive de projetos de lei, buscando a penalização maior dos crimes ou transferir responsabilidade do poder público para as empresas privadas, com algumas iniciativas às vezes muito bem intencionadas, mas que desnaturalizam a essência da Lei Maria da Penha que sempre buscou focar a prevenção e o combate dos crimes de violência contra a mulher responsabilizando as instituições pelas políticas públicas. 

Precisamos dizer que esse avanço também enfrenta hoje um momento de perigo de busca por um discurso que a Fabiana Severi denomina “domesticação da lei Maria da Penha” – essa ideia de trazer a proteção da família tirando o foco de gênero, da palavra gênero, da perspectiva da proteção da mulher. Esse é o panorama que temos hoje dos avanços, mas com percalços e dificuldades.

Nesse arcabouço, você identifica a Lei Lola (Lei nº 13.642/2018) como uma lei importante?

A origem da Lei Lola tem que ser reconhecida, ela é importante nesse aspecto, porém não resolve a falta de tipificação. Ela inclui o inciso sétimo no artigo primeiro da Lei nº 10446/2015 para dizer que, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exigia uma repressão uniforme, a Polícia Federal ou o Ministério da Justiça podem fazer a investigação sem prejuízo das polícias. Isso foi bem importante, porque não desprestigiou o trabalho importante da Polícia Militar e Civil nos estados das seguintes infrações penais. 

A lei anterior já dizia que isso deveria acontecer nos crimes de sequestro, formação de cartel ou roubo, receptação de carga, falsificação de produtos na internet, contra agência bancária, etc., porque já são crimes que têm essa natureza transnacional e interestadual. E acrescentou então que isso também deveria acontecer quando o crime for praticado por meio da rede mundial de computadores que difunda e, aí diz a lei, conteúdo misógino, colocado como aquele que propaga ódio ou aversão às mulheres. Foi a primeira vez que aparece essa – a gente não pode dizer que é definição porque ele não define – menção à expressão misoginia e crime de ódio contra as mulheres.

Há uma importância de olhar para essa questão, mas não resolve a tipificação, porque essa lei está tratando de formas e aprimoramento de investigação. Quando a lei presta esse acréscimo, quando a lei diz que a Polícia Federal e o Ministério da Justiça podem fazer essa investigação, não temos contribuição efetiva porque de fato a gente não tem a definição legal do que é o crime de misoginia, do que é o crime de ódio contra as mulheres. Então, em que tipo de crime essa investigação seria possível? Então é uma lei que teve uma boa intenção, mas que nitidamente não houve diálogo mais aprimorado, ao meu ver com um especialista com quem trabalha efetivamente na área, porque essa dificuldade da falta de tipificação já viria à tona se esse diálogo tivesse sido feito de forma mais aprofundada. Então essa figura penal crime de ódio contra mulheres e crimes de misoginia não existindo prejudica e torna essa lei inefetiva e ineficaz nas situações em que ela está sendo aplicada.

E a gente poderia ter tido um avanço importante com essa última decisão do Supremo quando ampliou o espectro da proteção penal nos casos de crime de ódio e intolerância praticado contra a população LGBTQIA+, que foi um grande avanço, mas não fizeram. Também já tivemos algumas iniciativas de inserção da palavra de gênero no artigo 20 da Lei do Racismo, que também acabaram sendo arquivadas. Isso também resolveria essa questão da dificuldade da Lei Lola: se a gente tivesse a interção da palavra “gênero” quando o artigo 20 da Lei do Racismo fala “o preconceito em relação à etnia, origem e raça”, já resolveria a situação dos crimes de ódio de misoginia, que são crimes praticados por circunstâncias da condição do sexo feminino, como eles dizem, de gênero. Então eu acho difícil a gente considerar a Lei Lola só como um avanço, porque a gente precisa trabalhar também sobre o aspecto da efetividade da lei e hoje ela não é efetiva, infelizmente, por conta dessa falta de tipificação.

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Você já teve contato com alguma investigação que tenha sido feita pela Polícia Federal por causa da Lei Lola, já viu isso na prática?

Não e nem tenho conhecimento. O que acontece, muitas vezes, é que esse tipo de comportamento na internete esse movimento tem muito a ver com a discussão da disseminação de material íntimo na internet de forma não consentida, o sistema de justiça, principalmente, o Ministério Público como titular da ação penal, vai buscando estratégias. Então, o que fazemos nessas situações dos tais crimes de ódio e misoginia na internet é buscar, por exemplo, enquadramento em um crime de apologia ou incitação à prática de crime. 

Tivemos, por exemplo, o caso de um YouTuber que tinha um grande alcance com adolescentes e fazia vídeos às vezes com a própria namorada, que era muito jovem, talvez menor de idade, falando de estupro em relação a ela. Ele dizia coisas do tipo “fica quieta, cala a boca, se você não fizer isso eu vou te estuprar”, “olha que eu vou te estuprar”, usando essa palavra estupro de uma forma super vulgarizada, banalizada e com uma mensagem muito ruim para esses jovens. E aí a gente conseguiu dizer que dessa maneira ele estaria incitando a prática do crime ou fazendo eventualmente apologia à prática do crime.

Existe uma dificuldade, em primeiro lugar, do que a gente define como discurso de ódio e todo o debate relacionado à liberdade de expressão, e num segundo momento essa questão da falta da tipificação do crime de ódio contra as mulheres no caso da misoginia.

São as estratégias que vão sendo buscadas. E, naquele caso, tínhamos  uma situação muito determinada: uma gravação, ele falando efetivamente de estupro de uma forma banalizada. Você consegue fazer um exercício de dizer que há uma apologia ou uma incitação à prática desse crime, mas isso nem sempre é possível quando a gente vê esses ataques na internet que a gente não consegue identificar de primeiro momento a autoria, que são feitas por uma horda de pessoas, é o que sofre muito as ativistas de direitos humanos. Existe uma dificuldade, em primeiro lugar, do que a gente define como discurso de ódio e todo o debate relacionado à liberdade de expressão, e num segundo momento essa questão da falta da tipificação do crime de ódio contra as mulheres no caso da misoginia.

Então, acredito que houve um avanço até. Recentemente, foi divulgada uma denúncia no Ministério Público de um caso em que um procurador estadual propagou diversas mensagens, vídeos, posts de discriminação e ódio à população LGBTQIA+.  A denúncia foi possível porque a situação estava muito clara, havia provas e já contávamos com o entendimento do STF do enquadramento da LGBTQIA+fobia na Lei do Racismo. 

Eu fico pensando como seria se tivéssemos avançado no âmbito do STF, eu posso imaginar, por exemplo, situações em que essa denúncia contra esse Procurador do Estado pudesse ser oferecida em crimes contra as mulheres. Lógico, o mais adequado, aliás o próprio STF reconhece isso, é o aprimoramento Legislativo, mas o Supremo fez esse raciocínio dos mandatos implícitos de criminalização. Entendeu que enquanto o Legislativo estiver em mora, enquanto o Legislativo não fizer o seu trabalho, os crimes não podem ficar sem tipificação e vão encontrar essa tipificação na Lei do Racismo. 

Recentemente, eu tive contato com publicações de uma mulher que faz uma série de posts tratando de feminismo de uma forma muito pesada. E chega um momento em que ela, ao meu ver, extrapola a liberdade de expressão de se declarar anti-feminista e de criticar o movimento feminista quando ela diz, respondendo caixinha de perguntas de uma rede social, que os movimentos de mulheres são abertos a práticas de pedofilia. O raciocínio que ela faz, ao meu ver, extrapola a liberdade de expressão e propaga ódio contra as mulheres. Você dizer que movimentos organizados de mulheres são abertos ou fortalecem ou toleram crimes contra crianças dessa maneira, isso é propagação de ódio contra as mulheres, porque vem toda uma carga de ataque de raiva em decorrência disso. 

Acho que esse avanço tem que vir de um aprimoramento legislativo mesmo.

Eu fico pensando que se tivéssemos a possibilidade de enquadramento da Lei do Racismo, poderíamos oferecer denúncia como essa que foi oferecida contra o Procurador do Estado e não é possível hoje, não termos essa abertura. Até porque fica ali o raciocínio do STF expressamente da denúncia, é citado artigo 20 da Lei do Racismo, e como que a gente faz isso se a gente tem toda aquela questão do direito penal e o rol taxativo que não permite analogia?

Então exatamente por isso eu não vejo também muito como fazer esse exercício sem o aprimoramento legislativo. Eu não acho que a gente vai conseguir outras estratégias de interpretação porque a gente está falando de direito penal, e é muito nítido esse rol taxativo no artigo 20. Então, hoje totalmente sem enquadramento legal, a não ser nesses casos em que você consegue encaixar uma apologia ou incitação à prática de crime; a não ser nos casos em que você consegue eventualmente uma vítima determinada ajuizar uma queixa crime por crime contra a honra, que é também muito frustrante porque é incrível como nosso Sistema de Justiça não valora a honra. A queixa-crime é muito vista como algo de menor importância, ela tem poucos segmentos, resultados e indenizações. Sendo assim, acho que esse avanço tem que vir de um aprimoramento legislativo mesmo.

Por que você acha que quando a gente avançou no STF com a criminalização da discriminação contra pessoas LGBTQIA+, ou mesmo essas outras ocasiões que você mencionou que tentaram colocar gênero no artigo 20, não foi possível fazer essas mudanças? 

A questão da inserção da palavra gênero no artigo 20 da lei eu acho que eu consigo responder de uma forma mais tranquila, de entender que isso é mesmo desse movimento mais recente de abolição da palavra gênero de qualquer tipo de iniciativa. Porque isso não aconteceu só nesses projetos de lei, vemos isso até no âmbito legislativo estadual e municipal de como a inserção da palavra gênero foi tratada como algo negativo e perigoso, muito por conta da propagação de discurso de ódio sobre a questão da ideologia de gênero. E essa palavra gênero ficou estigmatizada como uma coisa muito negativa, o que é fruto de muita ignorância, claro, mas a gente vê várias iniciativas assim. 

Eu estava outro dia lendo o relatório da CPI que foi feita sobre violência sexual nas universidades, que teve um relatório longo, detalhado, tratando de violência contra a mulher nas universidades e não há uma única menção a palavra gênero – propositalmente foi tomada essa cautela de não usar a palavra gênero. É interessante, porque até mesmo nas recomendações e nos encaminhamentos você vê que ali cabia toda a questão de debate de gênero, da violência de gênero, e o termo gênero é tirado de um contexto em que só poderia ser ele. Mesmo nesses projetos de lei que são apresentados de alteração da Lei Maria da Penha, é sempre com essa preocupação de não utilização da palavra gênero. A gente tem na Lei de Feminicídio expressamente essa retirada da palavra gênero na forma “por circunstâncias de gênero” – é o exemplo mais escancarado desse movimento. 

Porém, em relação ao Supremo, eu tenho uma dificuldade de compreensão porque perdeu-se uma oportunidade muito clara, talvez não tenha havido uma organização necessária. Não sei como é que estavam organizados movimentos de mulheres nessa litigância que precisamos fazer. Não sei se foi deliberado isso ou se ou se foi fruto realmente de uma estratégia de “vamos cuidar primeiro desse grupo, esse está mais tranquilo passar isso aqui e se inserir gênero vai criar um outro debate a gente não avança”, e é aquela questão das estratégias do que é mais fácil avançar. Mas eu lamento muito porque teríamos tido um salto importante, até mesmo para o aprimoramento legislativo, porque o Legislativo não supriu a necessidade da lei. Então agora corremos o risco de vir uma lei de criminalização dos discursos de ódio voltados à população LGBTQIA+ em razão do que decidiu o Supremo e não abarcar novamente a questão da violência de gênero contra as mulheres.

Vemos, por exemplo, que algumas políticas de redes sociais falam sobre discurso de ódio em razão de gênero, mas isso também protege os homens. Como você entende essa escolha de palavras e como você acha que é possível lidar com isso sob o âmbito da proteção? Por que gênero tem sido menos considerado nesses muitos processos? Tem algo específico que torna as questões relacionadas ao gênero mais difíceis de encontrarmos espaço na legislação? Há mais resistência?

Sobre essa última dúvida da questão de gênero ser menos considerada e ter mais resistência, acredito que está muito relacionado à propagação da ideologia de gênero. Esse discurso começou com a história da escola sem partido e dos perigos da ideologia de gênero nas escolas e toda a propagação desse discurso que acabou criando uma confusão muito grande, que mais uma vez é fruto de muita falta de conhecimento e de ignorância, e que no fundo está muito relacionada a muito preconceito e discriminação. 

Outro dia, ouvi uma colega dizendo que no fundo o discurso dos pais é “eu prego tolerância, eu prego respeito, mas eu não quero meu filho vire homossexual, não quero que minha filha vire lésbica”. No fundo é um medo de transformação das crianças e dos adolescentes em homossexuais, e esse receio só pode ser fruto de muita discriminação e preconceito da sociedade, caso contrário não haveria tanto tanto receio, tanto medo. 

Precisamos aclarar o conceito da discriminação de gênero para que então as mulheres fiquem tranquilamente abarcadas nessa proteção. 

Sobre a questão do termo gênero, em última instância, claro, o gênero também protege os homens. Aliás, quando falamos de gênero estamos falando da discriminação que se dá em razão das representações sociais dos papéis sociais. Mas acho que precisamos tomar muito cuidado quando for escolher essas expressões e esses termos para não excluir da proteção que queremos para aquelas que mais precisam. No caso, estamos falando de meninas e mulheres que são vítimas de discurso de ódio, o que está muito relacionado às questões da reação extremada ou da reação provocada por esse avanço de emancipação social, econômica, política e sexual das mulheres.

Mas, eu também não consigo ver uma solução que não trate da questão da discriminação provocada por circunstâncias de gênero, como pensada pela lei Maria da Penha, entendendo gênero como fruto dessa construção social histórica, dessa dessa relação de poder e assimetria dos papéis sociais entre homens e mulheres. Precisamos aclarar o conceito da discriminação de gênero para que então as mulheres fiquem tranquilamente abarcadas nessa proteção. 

Sobre a definição dos termos discurso de ódio e misoginia, como que a gente vai tratar disso pensando numa tipificação legal, pensando na questão da liberdade de expressão, e quais os seus limites? Eu acho que não tem como deixar de recorrer aos aspectos dos princípios maiores da dignidade humana, do que afligem, do que amedronta e do que propaga violência, então a gente vai precisar achar essas definições e recorrer ao direito comparado. Não basta ter uma lei dizendo que é crime propagar ódio na internet contra as mulheres porque sempre haverá reações dizendo que se trata de censura, que isso é liberdade de expressão. Nós precisamos definir alguns parâmetros e precisamos avançar na definição  do que é discurso de ódio. 

Em alguns casos que estamos olhando na pesquisa de jurisprudência, na falta de uma tipificação, vimos os casos serem tratados no âmbito da lei Maria da Penha, principalmente em casos envolvendo violência contra mulheres realizadas por ex-parceiros. Também estamos com dificuldade de lidar com as fronteiras da violência, pensando em diferenciações de casos que ocorrem em um espaço mais público – como em redes sociais – ou privado – por mensagem privada. Então pensando nessas diferenciações, e estabelecimento de seus limites com o âmbito de proteção da Lei Maria da Penha, nos questionamos se tem alguma coisa na própria concepção que a gente tem de violência contra a mulher que leva para esse lugar da violência doméstica, que gera uma dificuldade de lidar com a violência não doméstica ou que extrapole o ambiente doméstico. Você tem algo a dizer sobre essas reflexões?

Talvez, mais uma vez, a Lei Maria da Penha esteja sendo manejada exatamente como uma estratégia porque não temos uma figura adequada tipificada de misoginia, e aí você traz para o âmbito mais palpável quando você tem uma relação de afeto, ainda que terminada, entre o autor da violência e a vítima. Não acho que a questão da mensagem ter sido propagada no ambiente mais privado ou público que vai ditar se o caso será de aplicação da Lei Maria da Penha ou não, porque eu posso imaginar várias situações em que é possível a aplicação da Lei Maria da Penha. 

Essa discussão existe também na questão da injúria racial e do racismo, e existem alguns defensores que defendem o argumento de que você não pode dizer que a injúria racial atinge só uma pessoa determinada, porque o tempo todo a gente está falando de um grupo. A diferenciação que a lei fez de que quando é uma pessoa determinada é injúria racial, mas quando atinge uma coletividade ou grupo é racismo, como você diz isso? Quando um sujeito discrimina o outro numa loja, é claro que ele está atingindo um grupo. 

É mais ou menos isso que está sendo feito também na Lei Maria da Penha e assim como é feito na questão racial, raramente os crimes vão ser de aplicação da lei do racismo, mais comumente a gente vai ver a injúria racial porque a ofensa acaba sendo entre duas pessoas e isso vai ser enquadrado dessa maneira, a não ser nos posts genéricos, a não ser uma discriminação mais clara. Mas no dia a dia os casos mais corriqueiros são esses do sujeito que discriminou o outro e é dado injúria racial, não racismo.

Da mesma forma eu acho que está acontecendo nesses casos contra as mulheres quando há essa relação de afeto, de pensar “isso é briga entre os dois”, “isso é fruto dessa relação que terminou mal que é um conformismo da parte dele, então isso não é misoginia, ele quer atingir uma vítima determinada” e aí aplica-se a Lei Maria da Penha. Mas com muita certeza eu posso te dizer que isso é próprio desse exercício de não ter uma tipificação adequada, porque uma coisa não impede a outra. É claro que o sujeito pode fazer um post na internet visando atingir aquela ex-namorada que está com raiva, mas também é óbvio que ao fazer e dar publicidade a isso, e aí pode ser até no ambiente muito pequeno restrito de poucas pessoas, é claro que isso atinge uma coletividade. 

Para mim, eu tenho muita dificuldade de dizer que isso atinge só aquela mulher individualmente, a gente está falando de um grupo subjugado, oprimido historicamente e quando o sujeito diz que as mulheres realmente são vagabundas ou algo do tipo, é claro que ele atinge os dois bens jurídicos, é claro que ele atinge a dignidade, a liberdade e a imagem daquela mulher, mas também de uma coletividade. Basta perguntar para as mulheres como se sentem quando leem esses posts. É uma coletividade que você atinge independentemente de nominar.

Então acho que mais uma vez a Lei Maria da Penha vai ser buscada como estratégia para tornar aquilo mais palpável diante de um panorama onde a gente não tem definição nenhuma desses crimes de ódio. E acho que esse movimento também vai acontecer agora com essa tipificação que virá com a Lei 14.188/2021, que também pode ser problemático e precisamos pensar sobre a proposição sobre dano emocional da violência psicológica. Eu ainda não me debrucei sobre essa lei, mas vamos ter que pensar sobre essa violência psicológica e esse dano emocional não só do aspecto de como demonstramos isso, mas também a de como vamos ver esse movimento de busca, de dizer que essas vítimas sofreram um dano emocional. Então, muito desse discurso de ódio pode ser enquadrado eventualmente nesse crime que causa dano emocional de violência psicológica. 

E quem vai dizer que não, que esse discurso de ódio não esteja causando danos emocionais? Mas, e quem são as vítimas? Como vamos fazer essa demonstração? E mais uma vez é uma busca por estratégias não adequadas para lidar com o problema diante da falta de tipificação. Se tivéssemos uma tipificação adequada de misoginia, talvez não fosse tão difícil lidar com essas questões que você disse, de que aconteceu só privado, mandou só para mulher individualmente e de que publicizou. Mas publicizou onde? No Facebook, mas meu grupo é fechado, não é público; ou no grupo de WhatsApp da família, e saber o que cada uma dessas situações implica.  

E qual seria a competência das polícias e da Justiça nesses casos? Mesmo não tendo uma tipificação específica, pensando nos possíveis enquadramentos que você mencionou de difamação, apologia e incitação.

Nesses casos da internet existem muitos conflitos de competência, pois, em alguns deles, a Justiça Estadual entende que ela deve atuar e a Justiça Federal tem a mesma compreensão. Isso, no entanto, como eu disse, não está relacionado à competência para processar e julgar esses crimes, mas sim ao fato de quem tem a competência para investigar, porque se tem essa ideia de que a Polícia Federal, e por vezes ela é de fato, é mais aparelhada para essas investigações de crimes cibernéticos. A Justiça Estadual também tem divisões, então a gente tem as varas especializadas de violência contra a mulher, que estão nesse recorte da Lei Maria da Penha e portanto estamos processando todos esses crimes que acontecem no âmbito doméstico das relações familiares ou de relações de afeto.

Isso é amplo, então é a situação que você mencionou, se eles já se relacionaram, eles foram namorados, foram casados, viveram juntos e se separaram e houve esse tipo de mensagens, post, e-mail ou publicação na internet, a competência é da Vara Especializada de Violência Contra a Mulher. Se não houve isso, aconteceu na internet um ataque com uma ativista de direitos humanos, aí é competência da Vara Criminal Comum. E tudo bem, pode ter até o questionamento dependendo do contexto, de ser federal ou se não é dependendo do caso, mas a princípio é competência Vara Criminal Comum.

O que houve recentemente no âmbito do Ministério Público Estadual, e eu não tenho conhecimento de outras iniciativas de outros Ministérios Públicos em outros estados, mas foi bem importante para nós, foi a criação de um grupo especializado de crimes de intolerância, o GEACRI. É muito interessante esse trabalho que começou neste ano. O grupo tem essa atribuição, no âmbito do Ministério Público, de lidar com esses crimes, inclusive, esses de misoginia que não entram no contexto doméstico. Então esse grupo vai lidar com essas questões, até das dificuldades de enquadramento legal e tudo mais. Mas, vai lidar como? Ajuizando ação penal na Vara Comum, porque a gente não tem uma vara especializada de crimes de intolerância ou de crimes de ódio.

A criação do GEACRI tem como objetivo dialogar com a sociedade civil, com as instituições que já estão fazendo o trabalho nessa área, propiciar conscientização, assim como estar mais próximo dessas situações, até para ouvir essa demanda e quem sabe até colaborar na proposição legislativa de aprimoramento dessas questões. Como o GEACRI vai lidar com essa questão da misoginia na internet eu ainda não sei dizer, vai ser uma dificuldade, porque na hora que você cria um canal a demanda chega, e a demanda chega acompanhada de expectativa de resposta, e essa resposta vai ser muito delicada com relação às mulheres.

Hoje o quadro é esse, temos na Vara de Violência Doméstica esses crimes, como você bem colocou, sendo restringidos no seu alcance, a gente pode dizer, do espectro da violência doméstica e familiar. Restringido com seu alcance não por uma questão ideológica de que acreditamos que isso está restrito ao âmbito das partes, mas sim por uma questão de não termos outra alternativa, então hoje o alcance da propagação desses crimes é restringido para o âmbito da violência doméstica por uma questão estratégica e de falta de outros recursos. E quando ele acontece nitidamente fora desse espectro, ele fica na Vara Comum e é cuidado pelo GEACRI. 

Uma outra questão importante de mencionar sobre a violência contra mulheres propagada publicamente é que nesse exercício e nesse processo de encontrar definições e parâmetros para identificar misoginia e discurso de ódio, nós precisamos pensar no papel do Direito Penal, no sentido de que nem todos os comportamentos que consideramos repugnantes, abjetos e amorais da internet vão conseguir enquadramento legal específico no ordenamento penal. O que não é necessariamente ruim, visto que precisamos buscar outras ferramentas, não sair criminalizando tudo.

É mais ou menos esse raciocínio que temos feito com o debate sobre relacionamentos abusivos. Às vezes, há um clamor por criminalização de comportamentos que são próprios de um cara que é imoral, mas que não necessariamente o Direito Penal tem que cuidar e definir. Precisamos traçar parâmetros do que será criminalizado, porque não é todo xingamento contra a mulher, não é toda ofensa contra a mulher que a gente vai penalizar, ou estaríamos diante de uma possibilidade de um descrédito também. É preciso estabelecer parâmetros claros para definir crimes de ódio e de intolerância.

No MonitorA, projeto de monitoramento que realizamos ano passado em parceria com a Revista AzMina de redes sociais de candidatas e candidatos durante as eleições, vimos uma série de ataques que não violam a lei ou termos de uso, mas causam danos às candidatas. Ficamos pensando, como criminalizar uma conduta que, individualmente parece uma frase muito simples, mas produz dano no contexto de uma avalanche de ataques? Você pensa em alternativas para coibir situações deste tipo?

Há alternativas que não são positivistas do aspecto da chancela penal mesmo, como punições administrativas no âmbito da política partidária, por exemplo. Pode ser feita uma responsabilização dos partidos pelo conteúdo que esses candidatos ou já parlamentares estejam propagando ou a forma como estão tratando suas colegas. Ou punições de suspensão, por exemplo, como vimos com o caso da Isa Penna – tudo bem, ali tinha uma questão penal, um crime de importunação sexual, mas é importante a Câmara, a comissão de ética também suspender, porque essa suspensão tem um caráter punitivo e pedagógico importante que está para além da questão da imposição de uma pena da sentença condenatória por importunação sexual.

 As coisas têm que caminhar em paralelo e, às vezes, você não tem a resposta punitiva porque não vamos ter Direito Penal para lidar com toda essa gama de comportamentos. Mas você tem estratégias administrativas que são mais fáceis de serem utilizadas e que também surtem efeito. 

A exposição de determinadas figuras da internet tem mais ou menos cumprido esse papel. É claro que o tribunal da internet muitas vezes coloca pessoas na fogueira pública e ataca de maneira angustiante. Mas algumas reações também têm papel pedagógico, eu não tenho dúvida disso, mais do que a imposição de uma sentença penal teria. 

Por essa razão, eu acho que precisamos buscar outras estratégias, principalmente, para as mulheres que sofrem violência na internet. Porque quando elas pedem justiça, não necessariamente elas estão esperando uma denúncia, uma ação penal e uma sentença condenatória. O clamor por justiça é muito maior que isso, passa pelos provedores, pelas plataformas se responsabilizarem por esse conteúdo e retirarem imediatamente do ar, talvez com a suspensão dos agressores desses espaços por um tempo. Existem outras formas de contenção social que não apenas a questão legal penal.

Em uma das entrevistas, uma advogada que atua mais com racismo falou que faz muitas representações para o Ministério Público que ficam sem resposta, o caso não é sequer arquivado. E quando você falou do GEACRI, eu fiquei pensando, o Ministério Público ser tão grande, ter tantas entradas, o que isso significa?

O GEACRI foi criado após uma série de reuniões e discussões para lidar com a noção equivocada de crime de menor importância ou motivado por liberdade de expressão. E tem um colega nosso, o Cristiano Jorge, que é professor da PUC e escreveu um livro sobre racismo, e ele também foi um dos grandes incentivadores dessa questão de precisar de especialização nessa área dos crimes de ódio de racismo. 

E, salvo engano, ele chegou a fazer um levantamento no Ministério Público e de fato havia pouquíssima resposta em termos de ação penal e de sentença condenatória para esses crimes, pouquíssima em relação aos crimes de injúria racial que é no âmbito individual e menos ainda nos crimes de racismo, que segue esse raciocínio de atingir uma coletividade. E pensando nisso, foi entendido que precisávamos de uma especialização, porque quando isso é pulverizado, pensando nessas varas criminais onde o promotor tem que lidar com pilhas e pilhas de crimes de latrocínio, de crimes de chacina, PCC, tráfico de entorpecentes gravíssimos, sequestro seguido de morte, enfim, crimes gravíssimos, daí quando chega a notificação de um xingamento numa loja, aquilo naturalmente é visto como uma questão de menos importância, recebe uma valoração ruim.

A especialização é o caminho para absolutamente todas essas áreas sensíveis. Foi assim o movimento com violência doméstica, porque também passava exatamente por esse problema do colega achar que agressão contra uma mulher era uma questão menor. Enfim, a gente tem toda uma gama de especializações, e não se tinha especialização dos crimes de intolerância, racismo, ódio, o que aconteceu esse ano com GEACRI.

Temos visto internacionalmente o emprego dessa categoria de discurso de ódio para se referir a discursos violentos direcionados a grupos minorizados em geral. Você acha que essa categoria faz sentido no contexto brasileiro para pensar nas mulheres ou para pensar em outros grupos minorizados? O que define discurso de ódio?

Não vejo problema nessa categoria, a princípio – discurso de ódio, crime de ódio ou misoginia. Mas sim em quais parâmetros buscaremos para defini-los. Nesse caso, não podemos prescindir do contexto histórico, social, político e econômico que nos foi imposto ao longo dos séculos até para minimizar o discurso de que “agora não se pode nem xingar a mulher?”. Não se trata disso. 

Esse discurso de ódio, para ser caracterizado dessa forma, para ser criminalizado, precisa vir do reforço desses papéis sociais, dessas posições impostas às mulheres ao longo da nossa história que induziram a violência entre os sexos, a desigualdade e a violência.

Então, não é apenas xingar e ofender a mulher, mas é um reforço dessas expectativas sociais, é um reforço desses lugares que não só discriminam mas que induzem violência. Toda vez que reforçamos uma posição assimétrica das mulheres em relação aos homens, criamos desequilíbrio e desigualdade, e um terreno fértil para a violência. O contexto histórico vai precisar acompanhar a exposição de motivos de qualquer tipo de tipificação, entender como que o reforço desse lugar pejorativo desvantajoso inferior da mulher vai acarretar discriminação e violência. Esse é o parâmetro principal, não prescindir das discussões sobre essa opressão histórica sobre essa dominação histórica até entender de que grupo estamos falando.

Em última análise, o Supremo fez isso quando ele lidou com o alargamento da proteção para a população LGBTQIA+, você precisa evidenciar o que é a população LGBTQIA+, que lugar ela ocupa na nossa sociedade, quais são as estatísticas de violência contra a população LGBTQIA+, e por que essa violência é praticada. Então, para você praticar violência contra a população LGBTQIA+, assim como para você praticar violência contra a mulher, você precisa acreditar que você pode fazer, que é legítimo fazer. 

Outra dificuldade que encontramos analisando casos de violência contra a mulher é, além da não definição de misoginia, o não reconhecimento do fenômeno. Temos visto casos, por exemplo, que envolvem racismo e misoginia, nos quais vemos a condenação por racismo, mas por misoginia não; ou o debate sobre racismo acontecendo, mas o de misoginia nem sendo citado. Como podemos compreender esse tipo de situação?

Talvez uma expressão da lei que eu acho que mais se aproxime do que temos que entender como misoginia seja a definição do inciso segundo da Lei do Feminicídio, quando ela diz “atentado contra a vida da mulher” – o primeiro inciso é na situação de violência doméstica e familiar e o segundo inciso por discriminação ou menosprezo. E olha, esse é um debate que também precisa ser aprimorado, a gente ainda não tem grandes contribuições e trabalhos na definição de discriminação e menosprezo e o que a lei quis dizer com discriminação e menosprezo para enquadramento legal nos casos de feminicídio.

A expressão “menosprezo”, no entanto, me agrada. Eu acho que podemos trabalhar bem com ela porque ela me remete a essa questão histórica: você não vê um homem sendo menosprezado por ser homem na sociedade. Quando você fala que as mulheres estão sendo menosprezadas por serem mulheres, me remete mais a essa ideia de contexto histórico social. É importante considerarmos as contribuições da Lei do Feminicídio. Não por acaso, estudiosas e teóricas da América Latina argumentam que feminicídios são crimes de ódio de misoginia pela manifestação de poder. 

Na Lei do Feminicídio, trabalhamos muito contra a ideia de crime passional ou crime por amor. Não se trata disso, se trata de manifestação de poder. Quando falamos de misoginia na internet, falamos de manifestação de poder. É dizer: eu posso te ofender dessa maneira porque você tem um lugar social desvantajoso em relação ao meu, porque você não é um sujeito de direitos tanto quanto eu sou. Então eu acho que é essa ideia mais ou menos que precisa ser trabalhada. As expressões de discriminação e menosprezo não foram colocadas ali por acaso, mas para abranger essas outras situações que não são da violência doméstica familiar. 

Você tem visto a Lei do Feminicídio sendo aplicada desse modo?

Temos pouquíssimas condenações de feminicídio pelo inciso segundo – tudo bem, a lei é relativamente nova. Tivemos recentemente até no caso de vítima trans uma condenação aqui em São Paulo no Primeiro Tribunal do Júri e a condenação dos jurados foi pelo inciso segundo, ele demonstrou que essa mulher trans foi morta numa situação de discriminação e menosprezo, mas são pouquíssimos os trabalhos que aprofundam esses conceitos. A gente ainda tem que avançar, mas acho que ele dialoga um pouco com isso que a gente está tratando. E esses conceitos, inclusive de misoginia, são terrenos desconhecidos, então vai para o que é mais palpável, como violência doméstica.

Você sabe como essas duas palavras entraram na lei?

Eu acompanhei. Foi super confusa a construção da Lei do Feminicídio, mas a ideia foi trazer para a proteção todos esses crimes que não estão sob o espectro da violência doméstica e familiar, abranger esses casos de mortes violentas de mulheres nesse outro espectro, assim como já havia acontecido em outros países. Lógico, a tipificação do feminicídio é diferente dependendo do país, tem país que restringe tanto que só é feminicídio quando é marido contra mulher, quando é relação conjugal, varia muito.

O exemplo que nos foi trazido muito forte foi o do campo algodoeiro, na cidade Juarez no México, de mortes violentas contra as mulheres que não estavam nesse espectro da violência doméstica e familiar. As mulheres foram mortas numa situação de muita miséria, de uma violência letal que era associada à violência sexual, de enxergar a mulher como coisa mesmo. E aí, é muito claro essa coisa do menosprezo – quem é a mulher? A mulher é a que eu estupro, mato, jogo numa vala e que ninguém vai investigar. Porque foi isso que aconteceu no campo algodonero da cidade Juarez. Foram milhares de mortes de mulheres pobres da zona menos favorecida da Cidade do México, e mulheres que o Estado pouco se importava com a investigação. Não tinha resposta penal nenhuma para aquelas mortes, impunidade total. Então essa ideia de menosprezo não é só de quem mata, mas é também algo que permeia o Estado.

E a discriminação, posso citar um caso que eu trabalhei de uma menina muçulmana que o pai trouxe um noivo para ela, uma mulher que não tinha 20 anos, se casar, e ela se recusou a casar-se. E aí, em uma briga familiar, o pai deu 7 facadas nessa menina. Com isso,você tem que pensar que a motivação dessas facadas, até poderia enquadrar no inciso primeiro porque fala da relação doméstica familiar. É mais cômodo e mais fácil para o Ministério Público buscar tipificação no inciso primeiro. Mas é um contexto de discriminação, de entender que a mulher não pode se recursar ao casamento. 

Por que nós não estamos falando de crime de ódio contra os homens? Porque você não tem discursos de menosprezo contra homens brancos não existe isso. 

Tem alguns exemplos de livros que dizem que matar a mulher por discriminação é, por exemplo, matar a mulher porque ela não pode ser pilota de avião ou matar a mulher que não pode ser CEO de uma empresa. Pode ser, é uma manifestação de discriminação não entender que a mulher pode estar naquele lugar. É no caso da Marielle, entender que a mulher não pode estar naquele espaço de poder, então eu vou silenciar aquela mulher porque ela não pode ser política e ativista. 

Então, podemos pensar em tudo isso, mas pouca gente está pensando sobre os alcances dessas duas expressões que são expressões super importantes do inciso segundo. Principalmente, a de menosprezo que eu considero que tem muito a ver com o discurso de ódio na internet, porque eles são discursos, em última análise, de menosprezo. E aí, é aquilo que eu falei para vocês, temos que diferenciar. Por que nós não estamos falando de crime de ódio contra os homens? Porque você não tem discursos de menosprezo contra homens brancos não existe isso. 

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