Imagem do projeto, com fundo azul e o texto: conquistas e desafios na proteção da intimidade na internet. No canto superior direito, um quadro de fundo verde-água e formato de bandeira com o texto: Especial Marco Civil 5 anos InternetLab

Conquistas e desafios na proteção da intimidade na internet

Especial Desigualdades e Identidades 10.04.2019 por Natália Neris

Por Natália Neris

Imagem do projeto, com fundo azul e o texto: conquistas e desafios na proteção da intimidade na internet. No canto superior direito, um quadro de fundo verde-água e formato de bandeira com o texto: Especial Marco Civil 5 anos InternetLab.

Como o Marco Civil da Internet (MCI) garante o direito à intimidade na rede? Essa é a pergunta que norteia o tema de hoje do Especial 5 anos de Marco Civil. Para ver os temas já tratados ao longo do especial, clique aqui.

Sabemos que grande parte do conteúdo consumido na internet atualmente é produzido por usuários e a partir de suas interações. Não contamos apenas com veículos que elaboram conteúdos próprios, mas também com plataformas que de fato lucram a partir do conteúdo gerado por terceiros. Essa realidade colocou um desafio à responsabilização em casos de atos ilícitos na rede, e impôs uma questão relevante: qual o papel das plataformas (na linguagem do Marco Civil, provedores de aplicações) nesses casos?

Há diferentes modelos de responsabilização pelo mundo, e no Brasil a regra explícita sobre o tema foi definida somente após a aprovação do Marco Civil: os provedores de aplicações estão isentos de responsabilidade até o momento que recebem uma ordem judicial para remoção de conteúdo – e serão responsabilizados apenas se não o fizerem.

Mapa mundi com o Brasil destacado em verde, os seguintes países destacados em amarelo: Estados Unidos, Canadá, México, Porto Rico, Colômbia, Guiana Francesa, Chile, Argentina, Uruguai, Portugal, Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Camarões, Uganda, Quênia, Malawi, África do Sul, Israel, Índia, Japão, Filipinas, Austrália e Nova Zelândia. O restante dos países está em branco.
Clique na imagem para acessar a análise comparada do modo de enfrentamento à disseminação não consentida de imagens íntimas em 27 países

A regra foi inscrita no Artigo 19 e trataremos dela de modo específico nas próximas semanas. Nesta trataremos da exceção à ela e que foi inserida ao final da tramitação da Lei, o Artigo 21. No âmbito dos debates sobre a lei duas adolescentes – Giana Fabi e Julia Rebeca – cometeram suicídio após terem vídeos e imagens íntimas na Internet, e a gravidade dos acontecimentos recolocaram a questão.

O que diz o artigo 21?

Art. 21. O provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.

Na redação original dada ao artigo, não existia a condição, para responsabilização após essa notificação (privada, pela parte interessada), de que o pedido de remoção fosse feito pelo(a) participante na imagem. Isso gerou reações na sociedade civil mobilizada pela aprovação do Marco Civil, que se preocupava com o dispositivo passar a ser utilizado para a remoção de todo e qualquer conteúdo envolvendo nudez na internet. Seguindo recomendação de entidades civis, antecipada durante um debate na Campus Party, em janeiro de 2014, Alessandro Molon (Relator do Projeto de Lei na Câmara dos Deputados) incluiu no artigo que a notificação do provedor por esse tipo de conteúdo tinha de ser feita exclusivamente “pelo ofendido ou seu representante legal”. O objetivo era evitar, como dizia a carta enviada pelos coletivos, o “patrulhamento” na Internet.

O texto também passou a especificar que a notificação deveria conter, “sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador de direitos da vítima e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido” de acordo com pesquisa de Ana Carolina Papp. O ônus da identificação específica do conteúdo, assim, passava a ser da vítima, e não dos provedores. Assim, ainda que esse assunto não tenha sido discutido nas consultas públicas prévias à elaboração final do Marco Civil, a lei nascia com uma regra específica de responsabilidade dos provedores de aplicação na Internet para os casos de imagens íntimas não consensuais (NCII), visando a incentivar as plataformas a remover o conteúdo o quanto antes, sem obrigar a vítima a cumprir formalidades, constituir advogado, ou buscar a Justiça.

O desafio da mensuração/avaliação da eficiência

O objetivo da norma foi tornar os provedores de aplicação mais céleres na remoção dos conteúdos de nudez, no entanto, um desafio importante se impõe na mensuração de seus efeitos a partir de pesquisas que analisam decisões judiciais: a exceção prevista no Marco Civil nesse “regime geral” de responsabilização de intermediários estará funcionando tanto melhor quanto menos casos chegarem ao Judiciário. É que o baixo número ou a ausência de casos poderia significar que os provedores de aplicações estão removendo os conteúdos mediante notificação, no prazo previsto na norma, ou ainda num prazo considerado razoável pelas pessoas afetadas.

O que apontam as pesquisas do InternetLab sobre o assunto?

Trabalhamos com análise de decisões de segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o tema entre os anos de 2015 e 2016, logo, em anos bem próximos a aprovação do MCI. Chama atenção, de todo modo que das 90 decisões, 38 tenham sido mobilizadas contra provedores – o que parece indicar que menos que punição, as vítimas desejavam “fazer parar” o conteúdo.

Como podemos observar no quadro abaixo, com dados da pesquisa O Corpo é o Código, na maioria delas os próprios provedores são as partes recorrentes, em geral, se posicionando contra decisão em primeira instância, em favor das vítimas. Em geral, pediam anulação da tutela antecipada, concessão de efeito suspensivo ou nulidade da decisão e extinção de multa.

Partes recorrentes, nas decisões contra provedores
Vítimas 3
Vítima, em conjunto com provedor de aplicações 2
Ministério Público Estadual 1
Provedores de conexão 2
Provedores de aplicações e de hospedagem 30
TOTAL 38

Em 24 decisões (do total de 38), os desembargadores mantiveram os resultados de primeira instância, negando por completo, portanto, os pedidos feitos pelas partes que  recorriam. São casos relativos a (i) obrigação de remoção de conteúdo; (ii) necessidade ou não de apresentação da URL do conteúdo alegado infringente; (iii) identificação de IP de autores de postagens; (iv) fornecimento de dados cadastrais de contas de e-mail; (v) desindexação dos mecanismos de busca; (vi) pagamento de indenizações por danos morais; (vii) e pagamento de honorários periciais. Nos demais (14) os pedidos foram acolhidos ou parcial ou integralmente. Esses resultados parecem indicar uma tendência de responsabilização das empresas nos casos de NCII, mesmo sem a existência do artigo 21 ou sua explicitação direta após aprovação do MCI.

Uso inesperado: nudez e direitos autorais

A fim de atualizar diagnóstico, realizamos uma pesquisa exploratória novamente no banco de decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo. A busca revelou um dado novo em relação à 2016: o termo “pornografia de vingança” que não retornava resultados, no presente ano aparece em ao menos 3 acórdãos, o que indica sua incorporação pelo judiciário após aprovação do MCI.  Observamos ainda que para a aplicação do artigo 21 a existência da nudez e da notificação prévia às plataformas têm sido fundamental. Por fim, notamos que em amostra de 13 acordãos ao menos metade se referia aos pedidos de mulheres que posaram nuas para uma revista específica e ao notarem que suas fotos estariam sendo veiculadas em blogs demandavam exclusão das urls, fornecimento de dados do google analytics e exclusão dos resultados do google search. Nas decisões há discussões sobre violação de direito de imagem pela falta de autorização da autora e da editora, o que nos surpreendeu por fugir em grande medida de um debate que seria comum em casos típicos de vítimas de NCII.

As decisões nesse caso não são unívocas: em geral acata-se tão somente o pedido de exclusão de URL’s, no entanto em pelo menos duas não há compreensão da responsabilidade das plataformas.

O uso atípico e a não uniformidade da direção das decisões apontam para a dinâmica e novas disputas que a aprovação de uma lei pode produzir.

Aprofunde-se

Para ler mais sobre os assuntos discutidos aqui, veja:

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Natália Neris é coordenadora de pesquisa da área de Desigualdades e Identidades no InternetLab.

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