“Às vezes, a misoginia não está no discurso, mas na motivação do ato”
A advogada Paula Bernadelli contextualiza o fenômeno do discurso de ódio, a partir da ótica jurídica, ao Especial Discurso de Ódio.
A quarta entrevistada do Especial Discurso de Ódio, Paula Bernadelli, traz como fio condutor a problemática da naturalização da violência contra a mulher, o que gera a minimização de atos violentos e discursos misóginos direcionados a elas. Destrincha, ainda, a violência de gênero na política, além do uso distorcido da liberdade de expressão para disseminar ódio contra mulheres.
Paula Bernadelli atua especialmente com direito digital, eleitoral e administrativo. Integra a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), a Comissão Permanente de Estudos em Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e a Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná com habilitação em Direito do Estado.
A gente tem uma cultura que é amplamente fundada na misoginia, mas se você pensa numa mulher que é negra, que é lésbica, a gente também tem uma cultura amplamente fundada no racismo, amplamente fundada na LGBTfobia. Então isso se acumula nessa pessoa, e é difícil falar que ela é mais discriminada ou sofre mais violência por ser mulher ou por ser negra.
Confira a entrevista na íntegra:
Você considera que na última década o direito das mulheres no Brasil tem se fortalecido juridicamente?
Eu acredito que sim. Tivemos um aumento de conscientização, talvez um momento de sensibilização do judiciário para essas pautas. O processo ainda é lento, muitas coisas ainda são questionáveis como, por exemplo, o caminho que tem que ser trilhado no judiciário, até algumas questões de um ativismo judicial para resolver algumas questões. Eu tenho a sensação, no entanto, de que em alguns aspectos o judiciário despertou para algumas questões femininas e quis resolver muito rápido. Então, isso não necessariamente é bom, pois não traz efeitos positivos ou uma melhora efetiva na vida das mulheres, mas acredito que tivemos um aumento muito considerável de uma sensibilidade do judiciário para essas questões.
Entre as leis que já existem para proteger as mulheres ou as que foram aprovadas nos últimos anos, quais você destacaria e por quê?
Bom, eu vou ter que puxar para a minha área principal que é a política – eu atuo em outras áreas, mas trabalho com direito digital e com direito eleitoral. Nesses dois ramos, tivemos tanto a aprovação da Lei de Cotas, de destinação de verba mínima para as mulheres na política, que foram bastante relevantes e que não são soluções ideais ainda, mas já são passos importantes nesse caminho. E com relação ao direito digital e aos ataques que as mulheres sofrem nesse ambiente, tivemos a aprovação da Lei Lola que é bem recente e que coloca na competência da Polícia Federal a investigação desses ataques de ódio que as mulheres sofrem na internet. Isso é bem importante pela capacidade tecnológica investigativa e de articulação da investigação da Polícia Federal.
Após a criação da Lei Lola, nós observamos diferenças na investigação desse tipo de caso?
Essa lei é muito recente, os próprios casos da Lola, inclusive, não chegaram a ser investigados pela Polícia Federal por conta dessa lei. Então eu, pessoalmente, ainda não vi na prática muita coisa acontecendo. Eu vi algumas situações recentes de clientes que foram para a investigação já da Polícia Federal, mas que ainda não caminharam. A pergunta é boa, de fato, na prática não sabemos se isso vai trazer uma melhora, uma efetividade maior nas investigações, mas na teoria ficamos mais esperançosas de ter essas investigações articuladas pela Polícia Federal.
Que motivos você veria para a Lei Lola não funcionar?
Acredito que temos uma limitação quando pensamos nesses ataques virtuais que é a própria barreira que existe entre o Judiciário, as instituições burocráticas, democráticas e a tecnologia – a velocidade da tecnologia – e a forma como as coisas operam nesse ambiente. É uma limitação do que conseguimos alcançar de informações e descobrir na internet mesmo. Primeiro que a legislação não acompanha a velocidade da tecnologia, e outra, que é muito fácil se ocultar na internet. É óbvio que existem rastros, tudo o que é feito na internet em regra deixa algum rastro, mas é muito difícil chegar nas pessoas, existem servidores fora do país e as pessoas que coordenam esses ataques.
Encontrar essas pessoas depois que os ataques já foram feitos é importante, mas não resolve a vida das mulheres, o que resolve é descobrir como cessar isso.
Porque, às vezes, pensamos em discurso de ódio considerando ataques e ofensas que são feitas por pessoas que sabemos quem são, que têm rosto. Essas pessoas são fáceis de serem acionadas e geralmente elas não são as responsáveis pelos ataques mais graves, que são coordenados por grupos que operam na dark web, que não são fáceis de serem rastreados, que têm uma operação coordenada – isso é muito mais difícil.
Por isso, acredito que o não funcionar poderia vir disso, não seria o “não funcionar”, mas o quanto isso nos ajudaria, porque podemos continuar tendo essa mesma dificuldade. Como encontramos essas pessoas? Como paramos esses ataques? Encontrar essas pessoas depois que os ataques já foram feitos é importante, mas não resolve a vida das mulheres, o que resolve é descobrir como cessar isso. Como impedir que esses ataques coordenados sigam acontecendo e continuem tendo reflexos na vida dessas mulheres? E isso é muito difícil.
Pensando no contexto da Lei Lola, nela se fala em crimes cometidos com misoginia e uma das dificuldades que temos enfrentado, em nossas pesquisas, é entender quais crimes ocorrem motivados por misoginia e, principalmente, envolvendo discursos misóginos. Em outras palavras, dificuldade de entendermos como esses crimes costumam ser enquadrados juridicamente. Você tem experiência com essas situações?
Eu tenho pouca experiência nessa questão de defender o enquadramento de um ato ou não como misógino. Em minha experiência, no entanto, a dificuldade que eu enfrentei é justamente porque às vezes a misoginia não está no discurso, ela está na motivação do ato. Então eu já enfrentei situações em que o ataque não era direcionado à mulher, mas ao marido dela. Eles ligavam no trabalho do marido fazendo ameaças porque ele era casado com ela. Então às vezes o discurso em si do ataque não é misógino, quando você vê o discurso, quando você vê as mensagens que são enviadas, elas não são misóginas, mas a motivação claramente é.
Além da dificuldade de definir o que é misoginia, há essa dificuldade de mostrar que, mesmo quando é possível definir a motivação, ela não está expressa nas atitudes que são feitas. Acho que essa é uma grande dificuldade.
Pensando em casos que tratem especificamente de discursos misóginos, nós temos ferramentas suficientes no direito para lidar ou precisaríamos ter outras?
Eu acho que a gente não tem ferramentas suficientes, e eu acho que é uma discussão muito mais difícil do que pensar em qual seria a lei ideal, porque como estamos falando de discurso, entramos num campo de liberdade de expressão. E é óbvio que eu não defendo minimamente que uma pessoa tenha a liberdade de ser misógina, liberdade de expressão em ter um discurso preconceituoso, mas a gente entra num campo muito difícil.
E aí eu vou puxar para o direito eleitoral, que eu acompanho diretamente mais esse debate. Já ocorreram situações de candidatos com propagandas e discursos públicos durante a campanha altamente misóginos, alguns atacando diretamente mulheres que eram candidatas. Já teve candidato que aparecia na propaganda com mulheres, garotas de programa de costas, seminuas – é uma situação muito complicada. E aí quando pensamos no direito eleitoral, no discurso eleitoral, que é um discurso de construção do debate político, entramos num campo de que: é melhor pensarmos em uma lei que proíba um candidato de ter esse tipo de discurso ou é melhor que o candidato tenha ampla liberdade de mostrar quem ele é para que as pessoas decidam ou não votar nele a partir disso?
Quando entramos nesse campo da regulação do discurso tem um pouco disso, do quanto eu proibir o discurso protege a vítima do discurso ou só camufla quem é o agressor, só nos impede de identificar quem são os agressores.
Porque se eu proíbo um candidato de fazer isso, eu não estou salvando as mulheres que são vítimas daquele discurso e eu nem estou fazendo com que esse homem deixe de ser essa pessoa, eu só estou impedindo que ele mostre isso ao eleitor. Quando entramos nesse campo da regulação do discurso tem um pouco disso, do quanto eu proibir o discurso protege a vítima do discurso ou só camufla quem é o agressor, só nos impede de identificar quem são os agressores.
Então, acho que a gente não tem ferramentas suficientes, mas eu não sei, não tenho nenhuma ideia de quais seriam essas ferramentas. Quando lidamos com casos concretos fica mais fácil pensar “nossa, se para esse caso existisse uma lei desta forma, esse caso eu conseguiria solucionar”. Mas as leis não são feitas, não devem ao menos ser feitas, pensando em casos concretos, temos que pensar no que elas trazem de negativo. E aí quando entramos nesse campo de o quanto eu estou fazendo uma lei que protege as mulheres e o quanto eu estou fazendo uma lei que esconde os agressores, fica um pouco mais difícil da gente chegar a uma conclusão. Então, em resumo, não é suficiente, mas eu não tenho a menor ideia do que falta, do que a gente precisaria.
Leia também:
- “O ódio às mulheres tem nome, o ódio às pessoas negras e às pessoas LGBT também tem nomes”
- “O grande desafio é a gente fazer da segurança um hábito cultural na internet”
- “Essa visibilidade está sendo produzida por quem e quais efeitos está causando?”
O que você achou da Lei de Violência Política Contra Mulheres que passou no Senado recentemente?
Eu acho que entramos no mesmo problema de todas… Não temos ferramentas tecnológicas para buscar como proteger essas mulheres agora e temos uma questão nessas leis: todas as leis que têm surgido, essas motivações de violência política contra mulher, de impedir candidatura de chapa laranja. Criamos dinâmicas que vão sobrecarregando as mulheres na campanha, vamos colocando todas as mulheres responsáveis por cuidar da sua candidatura de uma forma que nenhum homem é responsável por cuidar da sua própria candidatura, então você cria uma sobrecarga de responsabilidade para as mulheres na tentativa de protegê-las.
E acho que entramos de novo no limite do que é exatamente como vamos definir o que é uma violência política e o que é simplesmente uma crítica dura no debate eleitoral. A justiça eleitoral tem uma interpretação muito própria de falar que quem entra na disputa eleitoral tem que ter a casca grossa, então tem que estar preparado para ataques e pra críticas ácidas, para piadas, tudo mais. Então ela tem essa interpretação e o quanto a gente estende essa interpretação para permitir a violência contra essas mulheres que entram na política.
Você acha que o fato de não ter um crime de misoginia torna as mulheres mais suscetíveis a discursos violentos? Vou explicar um pouco mais. Uma das coisas que estamos questionando é porque temos uma Lei Antirracista (Lei n° 7.716) que fala de raça, de etnia, de procedência nacional, religião. Temos uma decisão recente do STF equiparando LGBTfobia ao crime de racismo, mas não temos uma previsão para misoginia amplamente. Como você vê isso?
Eu costumo ser um pouco cética com as soluções legislativas. As pessoas mais céticas do direito sempre citam Carlos Drummond de Andrade para falar que “os lírios não nascem das leis”. Por outro lado, eu acho que ter uma lei que nos dê um norte de o que seria um crime de misoginia nos permite discutir sobre ela, ainda que para alterá-la. Precisamos ter um marco, precisamos ter um instrumento legislativo, que tem que ser muito bem discutido para não virar mais uma coisa puramente simbólica e que traga mais questões para as mulheres do que soluções.
Temos uma ferramenta legal a partir da qual se pode discutir, então podemos debater, falando “isso não funcionou”, “isso está ruim na lei”, “isso vamos melhorar, vamos reformar e propor reformas”. Temos um instrumento legal, a partir do qual se pode discutir a interpretação desse instrumento no judiciário, porque o que a gente tem hoje é uma livre interpretação do judiciário de o que é misoginia, o que é violência contra mulher. Ela é muito mais solta, o judiciário tem que interpretar muito mais, o que por um lado é ótimo, que o judiciário esteja se dispondo a interpretar, enfrentar esses casos. Mas, por outro, entra no que eu mencionei no começo, do excesso de um ativismo judicial que está interpretando questões que não estão nem previstas na legislação.
Isso tem um lado negativo coletivamente, socialmente, que acabamos olhando pouco quando estamos pensando nas questões que são boas para a gente. Então acho que seria importante sim a gente ter uma lei, um marco, mas eu tenho medo, considerando o Congresso que a gente tem hoje, que é provavelmente um dos mais conservadores que a gente já teve, e a gente não tem perspectiva de ter uma formação de Congresso menos conservadora na próxima eleição. Eu tenho medo do que pode vir de uma lei se ela viesse agora sobre isso, mas eu acho que ela seria importante.
Pensando nessas comparações todas, você acha que tem mais permissividade para a misoginia do que para LGBTfobia e para o racismo no contexto brasileiro?
Eu não sei se tem mais, eu não gosto muito dessas comparações. A Lola fala isso, que às vezes a gente entra em uma Olímpiada da opressão – parece que cada grupo quer dizer que é mais oprimido do que o outro – e eu acho que essas coisas se cruzam, é uma questão absolutamente interseccional mesmo.
Não sei se tem como dizer que uma é mais do que a outra, porque eu acho que existe uma questão cultural brasileira de misoginia. A gente tem uma cultura que é amplamente fundada na misoginia, mas se você pensa numa mulher que é negra, que é lésbica, a gente também tem uma cultura amplamente fundada no racismo, amplamente fundada na LGBTfobia. Então isso se acumula nessa pessoa, e é difícil falar que ela é mais discriminada ou sofre mais violência por ser mulher, ou por ser negra.
Eu acho que a reflexão é um pouco no sentido de que existe uma normalização específica que se dá no campo da misoginia. Pensando um pouco assim, você falou da incompatibilidade entre as formas de opressão. A gente tem refletido um pouco sobre a utilidade de uma categoria genérica como discurso de ódio – que englobe misoginia, racismo LGBTfobia -, se faz sentido ter uma categoria genérica ou se faz sentido pensar na especificidade de cada uma dessas formas de opressão e como ela se cruzariam. E aí eu acho que a pergunta é: tem essa especificidade?
É, mas acho que pensando dessa forma, eu acho que tem. E até uma coisa que eu fiquei pensando aqui, é que a violência contra a mulher tem uma questão de naturalização, que eu acho que é talvez parecida com as violências que decorrem do racismo, das pessoas acharem que isso é uma forma normal.
Pelo menos da minha vivência, o que vejo é que a violência contra as pessoas LGBT, às vezes, é negada, não é que ela seja naturalizada, as pessoas dizem que ela não existe, é como se uma pessoa que tenha atacado uma outra pessoa por ela ser LGBT, mas não foi por isso que ela foi atacada. E da mulher ela é minimizada, é uma coisa de “ah, mas olha onde ela estava”, “olha a roupa que ela usava”. Então, talvez exista uma diferença na forma como é socialmente encarada. Em uma das pessoas negarem que existe, e na outra das pessoas negarem que aquilo é uma violência, acharem que é natural. Me ocorreu isso agora, mas baseado unicamente nas minhas percepções, não sei se faz sentido na realidade.
Você começou a falar sobre a dificuldade de se investigar os crimes quando eles acontecem na internet e quando estamos falando de violência de gênero em geral. Você poderia falar um pouco mais sobre isso?
São muitas as formas de ataque que decorrem dessa articulação virtual. No caso da Lola Aronovich, por exemplo, temos que pensar que o blog dela foi um dos primeiros de grande acesso, de muita movimentação. E ela sempre teve um blog não só sobre teoria feminista, mas que atuava muito na denúncia de grupos que atuam na dark web, atacando ou proferindo e alimento um discurso muito misógino – o que é é perigoso. Ainda que muitos desses grupos não façam nada no mundo real, na vida prática, eles acolhem pessoas que vêm com essas ideias muito radicais, muito violentas e incentivam atos de violência.
E ela sempre monitorou de alguma forma esses grupos, acompanhou debates nesses fóruns anônimos, que apesar de serem anônimos as pessoas identificavam muitas vezes quem era pelo menos o dono do fórum. E ela denunciava isso nos blogs, o que atraía essas pessoas para o blog dela, faziam uma série de comentários muito pesados e que começaram a organizar uma série de ataques contra ela. Eles começaram a cercar a vida dela de uma forma muito agressiva e coordenada.
Além disso, esses donos dos fóruns anônimos foram presos alguns anos depois em uma operação da Polícia Federal que pegou várias páginas de pedofilia, de nazismo e de racismo, e como eles eram os donos dessas páginas eles foram presos, um deles está preso ainda e o outro acho que está foragido. E antes disso eles entraram com ações contra a Lola, eles tentaram articular que todas as pessoas que a Lola citava no blog começassem a entrar com ações contra ela pelo Brasil, para que ela tivesse que gastar dinheiro tanto com advogado quanto com passagem para ir para esses lugares, para as audiências, para os atos processuais.
A Lola teve inicialmente um escritório que atuava pró bono para ela, e esse escritório começou a sofrer ataques, eles tentaram arruinar a vida profissional de mulheres que se dispuseram a defender a Lola em processo. Isso transborda, porque as ações que eles entraram não são ações de conteúdo misógino, não era atacando. Pelo contrário, era falando que ela atacou eles, que ela acusou eles injustamente no blog, pedindo uma indenização. É uma ação cível comum que qualquer pessoa pode entrar, qualquer pessoa que se sentir ofendida, mas a motivação que era expressa nesses fóruns anônimos, era “vamos incomodá-la”, “vamos fazer com que ela tenha que viajar o Brasil todo”.
Em uma das ações, eles começaram a divulgar nesses fóruns qual era o dia, local e hora da audiência de conciliação, dizendo que contratariam uma pessoa para ir a audiência e matá-la quando ela chegasse lá – isso estava tudo nesses fóruns. A gente foi juntando isso e apresentando para o juiz, falando “veja, ela não tem como ir, não é uma ameaça de uma criança na internet, de um perfil fake falando uma bobagem”. É uma ameaça que foi direcionada a ela, que foi interceptado nesses fóruns, que estão pensando em atacá-la na saída da audiência e que é grave, ela é uma pessoa que já é muito atacada há muito tempo, que já teve que ter escolta da polícia em algumas palestras que deu. E o juiz simplesmente não acatou, ele falou que não via motivos para que ela participasse por videoconferência.
Também existe, às vezes, uma incompreensão do que é a história dela nesses casos, de acharem que são só jovens aterrorizando uma pessoa na internet, não o caso de uma pessoa que está sendo constantemente ameaçada. E nessa audiência que eu mencionei, como brigamos muito no processo para que não tivesse audiência, eles baixaram dados da família do advogado que estava assinando as peças no processo, localizaram o endereço de uma das mulheres da familia dele e mandaram um e-mail para ele só com o endereço dela e o local que ela trabalhava, sem falar absolutamente mais nada. Então ele registrou boletim de ocorrência na época e eles não mandaram mais nada.
Quando ele fez o boletim de ocorrência da ameaça enviada, na verdade, ele não tinha ali nenhuma ameaça, foi um e-mail com a divulgação dos dados de uma mulher da sua família – materialmente é isso que ele tinha para registrar, um e-mail com os dados dela enviado por uma pessoa anônima. A gente que está vivendo o contexto absolutamente que isso é uma ameaça, e que isso é uma ameaça de motivação misógina direcionada a um homem que advogava para ela, então é vendo justamente esse caso que eu falo dessa dificuldade de quando o ato em si não é misógino, mas a motivação claramente é.
Os casos da Lola são muito complexos por conta disso, porque eles envolvem quase todas as variáveis que podem decorrer dessa situação. É um ataque a ela pelas ideias que ela tem e pela atuação dela como feminista, esse é o único motivo dos ataques. E a forma como esses ataques vão se desdobrando, de tentar arruinar carreiras profissionais de mulheres que atuam para ela, de tentar ameaçar advogados que atuam para ela… Nesses fóruns, eles pregam muito alguns atos que eles definem como heróicos, de um homem matar mulheres e depois se suicidar, de que eles todos são injustiçados pelo mundo, e que então eles vão se suicidar e que a forma heroica de se suicidar é matando mulheres antes, levando algumas das mulheres.
É uma coisa muito pesada e é uma coisa que você vê se materializando, porque se você pega esses ataques que tiveram em escolas recente nos últimos anos, quase todos eles foram organizados nesses mesmos fóruns. Existem registros das discussões, das pessoas falando, tanto que a maioria das vítimas nesses ataques geralmente são meninas, então você vê que são coisas que se materializam, não é só um fórum de pessoas. A gente cresceu ali numa época de Orkut de uns fóruns que a gente falava “é um bando de adolescentes falando bobagem na internet”, e isso existe ainda. E acho que quando a gente discute discurso de ódio na internet, as pessoas ainda associam muito a isso, de querer restringir o adolescente de compartilhar meme com amigo dele. Só que não é isso, a gente tá falando de grupos que operam de forma articulada para disseminação de conteúdo de pedofilia, para organização de ataques muito violentos, para venda ilegal de armas, para a realização desses ataques. Isto está ali, a questão é que são fóruns anônimos super protegidos nessa ocultação de quem é o autor.
Então, acredito que casos como o da Lola puxam todas essas variáveis, de como descobrimos quem são essas pessoas, qual o discurso que tem que ser levado a sério a ponto de ter uma interferência prévia, como a gente consegue associar essas outras questões desses outros ataques que são conexos aos ataques feitos a ela, mas que não são direcionados a ela e que não tenham conteúdo próprio de misoginia, mas que tem essa essa motivação. E aí, é o que eu falo de quando eu penso em soluções legislativas para casos específicos, é porque é isso: se a gente tivesse uma legislação que permitisse colocar tudo isso no mesmo pacote e investigar tudo isso como uma operação única nesse grupo, isso talvez fosse melhor para desarticular esse grupo, mas eu não sei se isso é o melhor legislativamente.
Eu acho que volta no ponto que você falou de dificuldade de enquadramento quando estamos falando de um conjunto de ações. Ano passado, monitoramos candidatas no Twitter, YouTube e Instagram e tivemos muita dificuldade para categorizar mensagens como um ataque ou não, porque quando você vê no todo, na quantidade de mensagens que aquela pessoa está recebendo, o efeito dela é de intimidação, mas aquela mensagem individual não é nada proibido, não é nada que viola termos de uso. Então a gente está falando de um conjunto de ações que causa dano, mas você não consegue pensar em uma responsabilização individual, necessariamente.
Tem uma situação que eu vivi recentemente, que não tem a ver com ataque na internet, mas tem essa mesma premissa da gente não entender a violência de um ato isolado. Eu estava em uma audiência de uma chapa de vereadores que eu estava defendendo porque eles alegavam que as mulheres da chapa eram mulheres laranja, candidaturas fictícias para compor a cota, e apresentavam uma série de números que indicavam que as mulheres não tiveram gastos ou tiveram baixo gastos. E fizemos todo um levantamento mostrando que de fato elas não tiveram gastos, porque nenhum vereador da chapa teve, elas não tiveram menos gastos que os outros, é só uma configuração padrão de candidatura de cidades pequenas do interior: eles não têm dinheiro nas chapas de vereadores e ninguém tem gasto.
Na audiência, o advogado do vereador que entrou com ação para derrubar a chapa pediu para interrogar pessoas da cidade, e ele interrogava perguntando sobre as mulheres porque ele queria saber se as candidaturas eram fictícias ou não. E ele falava assim: “você conhece a fulana? E o que você tem a dizer sobre? Ela tem uma boa reputação na cidade?”. Eu interferi, e eu era a única mulher na audiência além das vereadoras que eu defendia, então o resto era tudo juiz, promotor, advogado. Eu interferi e falei “veja, eu não vejo pertinência nessa pergunta sobre qual a reputação das mulheres na cidade”. E o juiz manteve a pergunta, falou “não, pode manter” e não justificou, só mandou manter porque a lógica do advogado era falar como que essas mulheres de tão boa reputação não tiveram votos suficientes para serem eleitas.
Na prática, eram três mulheres em uma sala de audiência, ouvindo todos os homens da cidade, que foram arrolados como testemunhas, falando sobre a reputação delas na cidade, como se isso tivesse alguma coisa a ver, como se então uma mulher que tem uma má reputação, se ela receber voto é fraude? Não faz o menor sentido. E o juiz autorizou, eles não viram isso como uma violência contra essas mulheres. É um retrocesso, é quase perguntando sobre a mulher honesta do Código Civil anterior, “essa mulher é honesta”? E quando a gente entra na política tem muito isso de ficar atacando a reputação dessas mulheres. E isso individualmente, se isola essa atitude, um advogado perguntar para uma testemunha se a reputação daquela mulher é boa ou é ruim, isso é violento? Isoladamente eu não sei, colocar uma mulher em uma sala de audiência para ficar ouvindo todos os homens respondendo se a reputação dela é boa ou ruim, eu já acho que é muito violento. É difícil traçar essa linha mesmo.
Uma coisa que eu sempre fico muito sem compreender, é por que esses ataques organizados em escolas, como você comentou, são feitos em aberto. Isso me faz pensar muito na questão da misoginia, porque se a intenção da pessoa é fazer um ataque e não ser pega, por que ela não faz isso em fóruns fechados? Mesmo que não esteja abertamente nas redes sociais, qualquer pessoa pode ir até esses grupos. Eu não sei se tem a ver com isso que você disse de uma visão heróica sobre si, mas como essa escolha se relaciona com misoginia?
Eu acompanho muito esses grupos específicos que falam da Lola, eu sei que existem muitos outros. Neles, o que a gente observa é uma carência muito grande mesmo, essa vontade de ser visto como herói. E eles encontram nesses grupos esse acolhimento, de se você fizer isso, você de fato será um herói desse grupo. São pessoas que se sentem muito excluídas em sua vida privada, acham que são fracassados, e que ali naquele grupo encontram a culpa do seu fracasso, que é o fato de todas as outras pessoas, na cabeça deles, serem todas umas imbecis – as mulheres são todas manipuladoras e os homens que estão ali, atrás dessas mulheres, e que respeitam essas mulheres, são todos manipulados.
Nesses grupos específicos vemos muito essa carência, essa vontade de ser reconhecido como herói, mas eu não sei se isso é o que motiva todas as pessoas de todos os grupos que existem.
Acredito que existe uma vontade de ser visto praticando esses atos. Tanto é que muitas das vezes, pensando em outros atos também fora do Brasil, o final é essa pessoa se matar: ela entra, mata várias pessoas e se suicida. Porque eu acho que existe essa vontade do heroísmo mesmo nesse ato, mas não sei. Eu não sei se existe alguém na psicologia que estuda esses grupos, porque eu acho que seria interessante ouvir essa pessoa para entender, descobrir se tem alguma explicação psicológica para esse tipo de comportamento, porque não é um psicopata, ele precisa da atenção das pessoas, ele tem uma carência, ele quer suprir essa carência. Então, o que essa pessoa é? Eu fico muito curiosa também. Nesses grupos específicos vemos muito essa carência, essa vontade de ser reconhecido como herói, mas eu não sei se isso é o que motiva todas as pessoas de todos os grupos que existem.
A gente precisa de uma lei sobre discurso de ódio? Essa categoria funciona em nosso contexto?
Precisamos definir o que é discurso de ódio. Quando entramos nos debates sobre discurso de ódio, as pessoas sempre puxam para uma defesa de liberdade de expressão. A gente de fato esbarra nisso em alguns momentos, o que é a liberdade de expressão e o que é discurso de ódio, mas eu acho que essa zona cinzenta é só uma parte do problema, a gente tem um outro discurso que é claramente um discurso de ódio, a gente tem um outro discurso sobre o qual não há dúvida.
E o fato da gente não ter uma legislação, uma regulação específica sobre isso, permite com que esse outro discurso caia nesse mesmo debate da zona cinzenta. Então na zona cinzenta vamos debater por causa do caso, mas o que claramente é um discurso de ódio, o que claramente é um discurso que tem como fundamento do discurso o extermínio do outro, esse discurso não está nessa discussão democrática de se é liberdade de expressão ou se não é.
Então essa é minha opinião, eu sei que é um pouco controversa, mas eu acho que é isso, a gente tem sim uma zona cinzenta, mas a gente não pode tratar esse assunto como se tudo estivesse dentro dessa zona cinzenta. Temos uma parte que claramente não pode ser dita. Então um homem não pode ir lá e ficar falando que vai matar mulheres? Não, não pode, isso não é liberdade de expressão. Eu não tenho nenhuma dúvida de que ele não pode.
E eu acho que tem uma questão de que às vezes as pessoas também tentam pensar em uma legislação que seja atemporal, e é óbvio que a gente tem que pensar numa legislação a longo prazo, mas esse longo prazo tem um limite, porque essas próprias percepções do que é misoginia, o que é um discurso de ódio, o que é ofensivo, isso tem a ver com uma construção cultural de seu tempo. Coisas que há décadas atrás não eram ofensivas hoje em dia são, até pensando em questão de violência contra a mulher. Porque eu acho que existe um silenciamento das mulheres, mas a gente tinha também uma percepção cultural de que algumas coisas eram daquela forma e tudo bem, que as pessoas daquela época entendessem isso como normal.
Mas o fato de que elas entendiam como normal, não quer dizer que a gente precisa entender isso como normal hoje, e o que entendemos como normal ou não normal hoje, não precisa permanecer para todas as gerações futuras, essas gerações vão ter também as suas casas legislativas. Então a gente não vai conseguir achar um conceito de o que é misoginia, um conceito do que é discurso de ódio que seja perene, que seja atemporal, porque isso é cultural, isso faz parte do nosso tempo. Precisamos achar o que é aceitável para nós hoje, em nossa sociedade, e o que não é aceitável. E daqui uns anos as pessoas vão mudar essa percepção e que está tudo bem elas mudarem essa percepção.