5 anos depois: um balanço das políticas públicas de internet no Brasil
Por Maria Luciano*
Além de estabelecer direitos e garantias para os usuários de internet, o Marco Civil também oferece um conjunto de diretrizes que devem pautar a atuação do Poder Público. São dispositivos que orientam a formulação de políticas públicas e que estão voltados para o alcance dos objetivos da lei, como a universalização do acesso à internet, o acesso à informação, ao conhecimento e a promoção de instrumentos de participação popular. Dentre eles, estão diretrizes como a interoperabilidade de serviços de governo eletrônico, a divulgação de dados públicos, e a capacitação para o uso da internet e do uso de formatos livres e aberto.
Neste texto, que compõe o Especial Marco Civil 5 Anos, reunimos dados que ajudam a avaliar os resultados de ações do Poder Público na implementação dessas diretrizes em 4 temas principais:
- Universalização do acesso à internet
- Governo eletrônico e interoperabilidade
- Transparência
- Educação digital
Também entrevistamos Miriam Wimmer, Diretora do Departamento de Serviços de Telecomunicações do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.
Universalização do acesso à internet
Em novembro de 2018, com o objetivo de subsidiar a Comissão de Orçamento do Congresso Nacional nas discussões sobre o Projeto de Lei Orçamentária Anual para o exercício de 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) elaborou uma análise sobre ações de governo em diversos setores, dentre eles o de tecnologia e telecomunicações (acórdão 2.608/2018). No documento, o TCU indicou a ausência de um diagnóstico adequado sobre os problemas que devem ser resolvidos pelas políticas públicas; deficiência na gestão e na articulação entre os segmentos envolvidos; e falhas no monitoramento e avaliação, ratificando a posição do TCU no acórdão 2053/2018. A respeito da Política de Banda Larga, o tribunal concluiu que “um dos obstáculos à inclusão digital é a existência de políticas públicas desconexas entre diferentes poderes e níveis federativos, gerando redundância na prestação dos serviços digitais, falta de isonomia e desperdício dos recursos públicos”.
Os esforços de expandir a banda larga no país remetem a 2010, com o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) (Decreto 7.175/2010). O plano foi criticado principalmente pelo tratamento em caráter privado conferido ao serviço de acesso à infraestrutura de banda larga, afastando a exigência de universalização do serviço (ver “Relatório de políticas de Internet: Brasil 2011” do Comitê Gestor da Internet no Brasil). Em dezembro de 2018, o PNBL foi revogado pelo Decreto 9.612/2018. O novo decreto, contudo, também não confere efetividade à universalização do serviço. De um lado, esse cenário tem levado a desigualdades no acesso ao redor do país. De outro, fez com que a expansão do acesso à banda larga fixa fosse suplantado pelo acesso à banda larga móvel.
De acordo com a TIC Domicílios 2017, a proporção de domicílios conectados à internet chegou a 61% em 2017. Entretanto, esse avanço ocorreu de maneira profundamente desigual. A proporção de domicílios localizados em áreas rurais com acesso à internet (34%) representa quase a metade daquela observada entre domicílios de áreas urbanas (65%). Regionalmente, o acesso nas regiões Sudeste (69%), Centro-Oeste (68%) e Sul (60%) supera Norte (48%) e Nordeste (49%). E, em termos socioeconômicos, o acesso em domicílios das classes A e B (99%, 93%) difere em muito os 30% das classes DE. Em domicílios sem conexão, o motivo mais citado foi o alto custo do serviço (59% dos entrevistados) – além dos problema de infraestrutura, o Brasil possui a maior carga tributária em banda larga e a quarta maior em telefonia móvel.
Ainda segundo a publicação, 96% dos usuários da rede acessaram a internet pelo celular (proporção que era de 76% em 2014), sendo que 49% o fizeram apenas por esse dispositivo. Esse avanço no acesso exclusivamente pelo celular ocorreu principalmente entre os usuários de classes mais baixas, das áreas rurais (72%) e das regiões Norte (62%) e Nordeste (58%). De acordo com a Anatel, 98,2% da população têm acesso a dados móveis hoje.
Em entrevista ao InternetLab, Miriam Wimmer, Diretora do Departamento de Serviços de Telecomunicações do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, afirmou que “a crescente importância dos terminais móveis como principal meio de acesso à Internet é tendência mundial, acompanhada também pelo Brasil, fruto do barateamento e disseminação de smartphones, associados à crescente cobertura do território brasileiro por redes de 3G e 4G. Leilões de espectro realizados no período considerado permitiram avançar ainda mais na cobertura de municípios com banda larga móvel, por meio do estabelecimento de obrigações de ampliação da rede para as empresas vencedoras.”
Miriam acrescentou ainda que “a proporção entre planos pré-pagos e pós pagos vem se alterando significativamente. Em abril de 2014, planos pré-pagos correspondiam a 77% do total de planos de SMP; em janeiro de 2019, correspondem a apenas 56% do total de planos ativos. Essa redução de planos pré-pagos pode ser atribuída diretamente às ações regulatórias que tiveram por objetivo a redução das tarifas de interconexão de redes móveis (VU-M). Os valores elevados das tarifas de interconexão entre redes móveis de diferentes operadoras geravam incentivos financeiros para que estas cobrassem menos de chamadas dentro da rede da mesma operadora (chamadas “on-net”) e, dessa forma, acabavam levando os usuários a adquirir chips de várias operadoras. A progressiva redução dessas tarifas determinada pela Anatel levou a uma diminuição do número total de linhas ativas, à medida que os usuários deixaram de ter incentivos para manter chips de várias operadoras, e também a um significativo reequilíbrio entre a quantidade de planos pré- e pós-pagos.”
Para a Organização das Nações Unidas (United Nations E-Government Survey 2018), o Brasil está no grupo de países em que, a despeito de terem níveis consideráveis de serviços online, apresentam infraestrutura desigualmente desenvolvida. Problemas de infraestrutura também justificaram a queda do país no ranking do Global Connectivity Index do Huawei em 2018.
Governo Eletrônico e Interoperacionalidade
O uso de tecnologias pode, ainda, facilitar os canais de comunicação entre sociedade e administração pública. O programa brasileiro de Governo Eletrônico, por exemplo, incentiva o uso de TICs para democratizar o acesso à informação e aprimorar a qualidade dos serviços e informações públicas prestadas.
Em sua entrevista, Miriam Wimmer aponta a publicação da Estratégia Brasileira para a Transformação Digital, institucionalizada pelo Decreto n. 9.319/2018 e pela Portaria MCTIC nº 1.556, ambos de 21.03.2018, como “uma clara inflexão na compreensão do fenômeno digital como um elemento transversal, com impactos sobre todas as áreas de atuação do governo”.
Segundo a TIC Governo Eletrônico 2017, 90% dos órgãos públicos federais e estaduais possuem website. Destes, o serviço mais oferecido aos cidadãos pela plataforma foi o download de documentos e formulários (85%), sendo menos comum a possibilidade de preenchimento e envio de formulários (56%), a consulta a processos administrativos ou judiciais (48%), a emissão de documentos (37%) e boletos bancários (28%), e a realização de pagamentos (16%). Ademais, apenas 76% dos órgãos federais e 56% dos estaduais possuem website adaptado para dispositivos móveis.
No caso das prefeituras, a pesquisa estima que 5.153 tenham website, com os percentuais encontrados nas regiões Norte (85%) e Nordeste (86%) abaixo daqueles observados em outras regiões, como no Sul, onde todas as prefeituras declararam ter uma página na internet. A possibilidade de se agendar consultas, atendimentos ou serviços existe em 21% das prefeituras do interior com website e em 73% das capitais.
Embora cerca de seis em cada dez brasileiros tenham declarado ter realizado algum serviço de governo eletrônico no período de referência do estudo, para a maior parte das atividades de governo eletrônico pesquisadas, os usuários apenas buscaram informações na Internet, sendo pequena a parcela daqueles que realizaram parte ou todo o serviço na rede, sem precisar ir até um posto para finalizar o atendimento. Ademais, aproximadamente metade (51%) dos usuários com 16 anos ou mais alegou que não ter realizado atividades de governo eletrônico porque considera complicado usar a rede para o contato com o governo, e outros 25% mencionaram que acham difícil encontrar os serviços que precisam na internet.
No último relatório sobre governo eletrônico da ONU (United Nations E-Government Survey 2018), o Brasil subiu sete posições no ranking de governo digital, ocupando a 44ª. O documento sugere que maximizar o potencial de tecnologias de informação e comunicação (TICs) exige uma infraestrutura de operabilidade apropriada e transações digitais dentro do próprio setor público. Apenas 57% dos órgãos públicos federais e 36% dos estaduais possuem documento com padrões instituídos de interoperabilidade. Destes, só 38% dos órgãos no âmbito federal e 26% no estadual monitoram periodicamente o cumprimento dos padrões definidos em seus documentos (TIC Governo Eletrônico 2017).
De acordo com o relatório da OCDE Digital Government Review of Brazil de 2018, dentre os desafios a serem enfrentados pelo país está o de capacitar e conscientizar líderes, tomadores de decisões e servidores públicos a respeito dos desafios e oportunidades da transformação digital. Aproximando-se do diagnóstico do TCU, a OCDE defende que os gastos com TICs no setor público necessitam de planejamento estratégico e mecanismos de política pública para maximizar o retorno de investimentos em tecnologia.
Com as medidas, o governo aproveitaria melhor as oportunidades proporcionadas pela tecnologia para tornar o setor público – junto com suas políticas e serviços – mais aberto, inclusivo e inovador.
Transparência
Dados abertos são essenciais em um sistema representativo: eles permitem que os eleitores acompanhem e, se for o caso, contestem o trabalho daqueles que os representam. E a tecnologia pode ser uma poderosa aliada em facilitar esse tipo de divulgação.
De acordo com a TIC Governo Eletrônico 2017, 83% dos órgãos federais publicaram na rede catálogo de serviços públicos e 81% documentos com os resultados dos objetivos, planos e metas do órgão. Já na esfera estadual, 72% disponibilizaram catálogos de serviços públicos, 68% documentos com objetivos, planos e metas e 59% documentos com seus resultados. Ainda há muito o que melhorar.
Mas o art. 24, VI do MCI é pontual ao dispor que a divulgação de dados deve ser “estruturada”. A Lei de Acesso a Informação (Lei 12.527/2011) faz o mesmo. A mera disponibilização de dados e informações não garante o direito à informação.
Na avaliação do Global Open Data Index, no qual o Brasil ocupa o 8º lugar, o problema mais recorrente encontrado foi a dificuldade de se trabalhar os dados disponibilizados pelas autoridades brasileiras e, em segundo lugar, a não disponibilização da base de dados completa para download. A legislação trata de qualificar essa divulgação, determinando que os dados públicos sejam acessíveis, atualizados e apresentados de forma automatizada em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquinas.
Facilitar a manipulação dos dados também é responsabilidade da administração pública, e pensar a qualidade desse acesso é imprescindível para avaliar a efetividade do direito aos dados públicos.
Educação Digital
Segundo o MCI, o direito à educação, dever constitucional do Estado, compreende a capacitação “para o uso seguro, consciente e responsável da internet” (art. 26). O dispositivo parece qualificar o acesso à internet dos usuários, conferindo-lhes autonomia e maior segurança na rede. Contudo, apenas 14% dos diretores de escolas públicas e 19% dos diretores de escolas particulares afirmaram conhecê-lo (TIC Educação 2017).
De acordo com dados da TIC Educação 2017, professores avaliam mal as habilidades de seus alunos como avaliar as informações que devem ou não compartilhar na rede (43%), comparar sites identificando as fontes de informação relevantes (35%) e interpretar e julgar a confiabilidade das informações disponíveis na rede (27%). A despeito disso, ações de enfrentamento para problemas ocorridos na internet são priorizadas em detrimento de ações preventivas – apenas 18% das escolas públicas e 41% das particulares afirmaram terem realizado palestras, debates ou cursos sobre uso responsável da internet em 2017.
Aprofunde-se
Para ler mais sobre os assuntos discutidos aqui, veja:
- A governança não estatal da internet e o direito brasileiro (2015), artigo de Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho
- É pra valer? Experiências da Democracia Digital Brasileira: Um estudo de caso do Marco Civil da Internet (2016), dissertação de mestrado de Jessica Voigt Quintino Pereira
- Domésticas Conectadas: acessos e usos de internet por trabalhadoras domésticas em São Paulo (2018), pesquisa do InternetLab
- Voice or Chatter: Marco Civil vs. Copyright Reform a Comparative Study (2017), pesquisa do InternetLab
- Participação na governança da Internet: o multissetorialismo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) (2016), artigo de Kimberly de Aguiar Anastácio apresentado no 40º Encontro Anual da ANPOCS
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Maria Luciano é pesquisadora no InternetLab.