“Essa visibilidade está sendo produzida por quem e quais efeitos está causando?”
Luiza Ferreira, antropólogue, doutorande, não-binárie e transativista, traz ao centro da conversa do Especial Discurso de Ódio os desafios que persistem em ambientes online a pessoas trans e não-binárias.
O Especial Discurso de Ódio traz entrevista com Luiza Ferreira para destrinchar o panorama do movimento de pessoas trans e não-binárias nos espaços online. Luiza destaca, entre os temas levantados, como a internet se tornou um importante instrumento de atuação para as pessoas trans e não binárias. As dificuldades de acesso à internet, a falta de dados relacionados a essa população e a violência direcionada a ela são alguns dos pontos discutidos na conversa.
Luiza é doutorande do PPGAS/USP e está desenvolvendo a pesquisa “Trânsitos em texto: uma análise comparada de biografias e autobiografias de pessoas trans no Brasil e nos Estados Unidos”. Faz parte do Coletivo de Estudos (In)Disciplinares do Corpo e do Território (COCCIX/NAU/USP) e do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).
Eu diria que quem está tendo muita dificuldade de ocupar o debate, de ocupar esse espaço na internet hoje em dia, tem sido pessoas não binárias, porque o ataque está vindo de todos os lados.
Confira a entrevista na íntegra:
Como você compreende a organização social do movimento de pessoas trans e não binárias no atual contexto brasileiro?
Eu acredito que o movimento esteja passando por um período de transição que está, principalmente, relacionado com uma maior expansão de uma militância em outros campos que não apenas no campo de um movimento social mais tradicional, como ONGs ou de uma articulação mais direta com o poder público, que foi uma coisa que a gente viu principalmente nos anos 2000. Então, acredito que o número maior de inserção de pessoas trans nas universidades têm provocado uma outra forma de mobilização, inclusive universitária. O ciberativismo vem ganhando uma outra dimensão que também é relevante.
Além disso, o contexto da pandemia mais o aparelhamento dos poderes pela extrema-direita têm feito o movimento trans se organizar em outras plataformas e de outros modos. E, agora com a pandemia, especificamente, acho que principalmente esses movimentos maiores, como a ANTRA, estão se reciclando, procurando outras vias de acesso a pessoas e de disseminação de debates, mas também outras formas de atenção direta. Porque com esse aparelhamento pela direita, as políticas públicas foram se enfraquecendo tão duramente que a gente está vendo cada vez mais o movimento de pessoas trans respondendo com mecanismos de auxílio direto, como a distribuição de cestas básicas. Acho que nesse aspecto o movimento vem ganhando uma outra dimensão.
O contexto da pandemia mais o aparelhamento dos poderes pela extrema-direita têm feito o movimento trans se organizar em outras plataformas e de outros modos.
Quando você pensa nas pessoas trans que não necessariamente fazem parte de movimentos sociais, como podemos pensar na inserção delas, na contribuição delas para essas disputas sociais em torno da desconstrução da transfobia?
Nos últimos anos, o que eu tenho visto de mais bonito a partir dessa mudança que foi necessária, principalmente a partir dos anos de 2010, é o modo como esse espraiamento do debate político tem sido feito em tantas vias diferentes e que às vezes é minorado em uma disputa mais formal. Quando falamos na formação de coletivos ou de ONGs, às vezes isso parece menor, mas, por exemplo, o trabalho que artistas têm feito, ou para onde determinadas discussões estão sendo levadas quando pensamos no campo de fundação das epistemologias trans, da produção de um conhecimento trans. Ou, inclusive, com estudos sobre os efeitos de pessoas trans que são youtubers, que são vloggers e os efeitos que isso tem na disseminação de formas de nomeação de existência, outras formas de ocupar o próprio corpo e o mundo, digamos assim. E o que considero que tenha sido super bonito é ver como isso pode ser sim uma forma de enfrentamento de violências que talvez sejam mais evidentes, violências que talvez sejam mais propriamente nomeáveis, como por exemplo você descobrir sobre existências a partir de uma novela, ou a partir de um youtuber que você segue, ou em um debate na universidade. Mas, eu acho que isso também é político, também é uma forma de enfrentamento da transfobia porque isso enfrenta o enquadramento cisnormativo da sociedade Acredito que esse aspecto é politicamente relevante também, como organizamos o pensamento de certa forma.
Você acha que houve mudanças significativas nas pautas levantadas por militantes trans nas últimas duas décadas?
Com certeza. Eu acho que se a gente for pensar principalmente a partir de uma fundação formal do movimento trans, que é 1992, quando se tem a fundação da ASTRAL e depois da RENATA e da RENTRAL, que são redes de articulação principalmente de travestis. Nos anos 1990, a pauta era, principalmente, o combate à violência policial e a regulamentação do trabalho sexual, além da prevenção de HIV AIDS. E não que essas coisas não continuem sendo absolutamente relevantes quando a gente considera o quanto os aparatos policiais ainda são tão responsáveis pelo extermínio de vidas e por uma política de morte mesmo; e o HIV e a AIDS continuam sendo super graves, e o trabalho sexual continua sendo não regulamentado. No entanto, vejo que houve um caminho que é marcado por esse período dos anos 1990, depois a luta por políticas públicas, principalmente no campo da saúde nos anos 2000.
E aí, a partir de 2010, 2012, 2013, eu diria que é quando a gente vê o ciberativismo se disseminando mais e a pauta pela visibilidade se torna uma questão, principalmente, para ciberativistas e blogueiras que estão traduzindo coisas do exterior e que estão escrevendo coisas que elas não têm espaço para escrever dentro das universidades. E então, essa discussão começa a ganhar mais espaço e visibilidade na mídia, na universidade e em diversos espaços. Principalmente dos anos 2013, 2014, 2015 pra cá, o debate tem sido feito também mais em termos de, por exemplo: “Qual visibilidade é essa? É feita por quem? Em que moldes?”. Além de ter aumentado os questionamentos a aliades cis, questionando um pouco a ideia de que simplesmente o fato de você levantar pautas e estudar temas te faz necessariamente uma pessoa que merece uma estrelinha.
E isso perturba um pouco o que pareceria ser uma pauta simples de “nós queremos aparecer mais”, colocando em jogo quais são os termos a partir dos quais essa visibilidade está sendo produzida, por quem e quais os efeitos que ela está produzindo. Essa é uma questão que tem sido encampada não só por meninas jovens, que o pessoal pensa que ciberativismo é uma coisa de meninas jovens, mas vemos, por exemplo, a Giovana Cardoso, que está na fundação do movimento trans, pessoas mais velhas que estão tomando para si também esse tipo de debate, reivindicando, por exemplo, uma história trans, uma memória coletiva trans e isso é muito bonito.
Quando você pensa no debate sobre visibilidade e no posicionamento de pesquisadores e pesquisadoras cis, você consegue tecer relações entre o que tem acontecido em relação à população trans e a população negra?
Tem super a ver, principalmente quando pensamos em quais narrativas estão sendo produzidas, a partir de uma ideia de sensibilização ou de conscientização. Tem um pesquisador que eu admiro muito, chamado C. Riley Snorton, que está estudando a articulação entre não binariedade e negritude. Ele vem escrevendo bastante sobre as formas como a mídia tratou diversos casos relacionados à violência policial e homens negros nos Estados Unidos, assim como a morte de mulheres trans negras, e de que modo essas imagens vêm sendo produzidas. O que é muito interessante que ele captou, e que eu acho que precisamos começar a levar mais a sério aqui também, é a ideia de que quando se está tentando nomear ou produzir uma certa conscientização sobre violência, articula-se determinadas formas de existir, principalmente, racializadas apenas ao âmbito da perda da vida ou da subjugação a uma violência extrema.
O que ele está querendo dizer tem muito a ver com o que a Jota Mombaça também fala, que é quase uma outra forma de extração do valor de certos corpos, de corpos trans, de corpos negros, que é a partir da extração da espetacularização da violência, de que aqueles corpos só merecem atenção a partir do momento que eles perdem a vida ou que eles são submetidos a uma extrema brutalidade. Então, eles só podem ser lembrados, os nomes só podem ser ditos, as imagens só podem ser produzidas se forem a partir dessa subjugação.
Ele está questionando, e a Jota também numa certa medida, mas a partir de uma outra ótica, até quando se vai partir do pressuposto de que apenas a visualização já é de certa forma uma coisa válida? Até quando se vai continuar produzindo essas imagens de novo e de novo e de novo, e repetindo imagens de pessoas negras, pessoas trans racializadas sendo submetidas a linchamentos e a violências extremas sem levar em consideração que de certa forma aquela vida só tem valor a partir da perda da sua própria visibilidade? Isso é muito doido porque o que ele vai dizer e a Jota também é que isso é feito a partir da positivação de outros corpos.
Você instrumentaliza certas imagens de certos corpos e de certos sujeitos para nomear violência, mas a positivação da experiência, como por exemplo, da experiência trans, se dá principalmente através de copos brancos ou através de corpos que são mais aproximados a padrões de beleza cis normativos. E, dessa forma, existe uma produção de quais corpos vão ser desejáveis, de quais corpos merecem direitos, quais corpos merecem bem-estar e felicidade de certa forma.
Você destacaria mais algum marco importante na constituição das reivindicações trans no Brasil, de 2010 para cá?
Eu acredito que a reivindicação da violência epistêmica e a reivindicação da legitimidade de outras formas de saber têm sido transformadoras. Não diria em termos de movimento social especificamente, e não que isso não aconteça, os movimentos são marcados, sim, por essa produção de conhecimento, mas eu diria que isso tem sido relevante principalmente para pensarmos que subjetividades trans não são categorias estáveis, permanentes. Não é como se você nascesse trans ou você nascesse cis. Já tem trabalho sendo feito que está mapeando que determinados debates de gênero, especialmente debates relacionados a subjetividades trans dentro das universidades, tem feito pessoas se assumirem, tem feito pessoas repensarem suas identidades.
Se não me engano, o pessoal do Xica Manicongo, que é a coletiva trans da USP, mapearam o aumento da quantidade de pessoas que se identificam como não bináries na USP nos últimos anos, ou no último ano, se eu não me engano. Isso tem a ver, assim como a internet, com a nomeação de outras formas de existir que questiona, que perturbam um pouco essa ideia de permanência ou de estabilidade da identidade. Isso tem a ver com um próprio imaginário em torno das subjetividades trans que é: você nasce assim desde pequeno, você escolhe um brinquedo e aí você sempre soube. Eu acredito que isso tem sido muito potente para pensarmos em termos de produção de conhecimento, de fazer uma produção de conhecimento mais politicamente investida e também mais ética e mais sensível, mas também tem a ver com outros horizontes imaginativos para pessoas, e não acho que não tem como negar o impacto disso.
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Como você pensa a internet a partir de um instrumento de atuação para as pessoas trans? É um instrumento importante?
Eu acho que é super, e isso em um âmbito mais amplo, não só no Brasil. A Susan Stryker, que é uma historiadora trans que tentou reconstituir um pouco como foi a consolidação do movimento nos Estados Unidos e a abertura da possibilidade da constituição de um campo de estudos trans, mapeou os anos 90 e a disseminação da rede de computadores domésticos e da internet como uma forma de articulação comunitária. De acordo com ela, isso permitiu que pessoas que viviam em extremo isolamento, que não tinham nenhum contato com esse tipo de possibilidade de existência, tivessem acesso a uma série de coisas.
E ela marca um efeito transformador, inclusive em termos de articulação política, que saia da necessidade de você ocupar, compartilhar um determinado espaço regional. E aqui no Brasil de fato vemos efeitos, quando olhamos principalmente para 2012, 2013. Isso é uma coisa que o Thiago Coacci também mapeou um pouco na tese de doutorado dele recentemente, o efeito que o ciberativismo teve para pensarmos outros mecanismos de articulação política.
Mesmo quando não pensamos em modo de articulação mais formal, quando pensamos nessas outras formas de compartilhamento e de criação de vínculos comunitários. Por exemplo, tem uma dissertação de mestrado que estudou os efeitos das comunidades do Orkut na formação de vínculos comunitários entre pessoas trans. Como aquela possibilidade de criação de avatares, a possibilidade de criação de perfis que não necessariamente representassem a sua constituição corporal permitiu que pessoas imaginassem, pudessem planejar. E pudessem entrar em contato com outros modos de ocupar a existência e conhecessem outras pessoas que dessem dicas sobre terapia hormonal, por exemplo, que tiveram efeitos consideráveis na constituição de um campo trans.
E de um campo que é pensado principalmente em termos comunitários, e, às vezes, isso é considerado algo menor porque isso não se reflete, digamos assim, em uma articulação que vai exercer advocacy ou que vai exercer políticas públicas. E já tivemos esses debates em alguns lugares quando discutimos o que é político ou não nesse campo. Mas eu continuo defendendo que sim, é extremamente político, principalmente quando consideramos a história do movimento trans.
João W. Nery tinha um grupo de pessoas no Facebook em que eles construíram uma planilha de Excel com dicas de médicos que eram amigáveis e respeitadores de pessoas trans.
O que consideramos movimento trans nasce de vínculos comunitários entre travestis na prostituição que estavam, na verdade, querendo garantir o seu direito de circular pela cidade e de trabalhar, e aí que veio a reivindicação. No início, era uma articulação comunitária mesmo, e eu acho que é importante reconhecer o impacto político dessas articulações comunitárias que se dão a partir do Orkut, por exemplo, que se deram depois no Facebook. João W. Nery tinha um grupo de pessoas no Facebook em que eles construíram uma planilha de Excel com dicas de médicos que eram amigáveis e respeitadores de pessoas trans. Os efeitos disso são gigantescos, PDFs circulando de livros e biografias, autobiografias de pessoas trans etc. Existe um certo alcance e um certo compartilhamento que a internet proporciona e que está para além de um debate maior sobre projetos de lei, por exemplo.
Quais são os principais desafios que as pessoas trans encontram para utilizar a internet a partir desses lugares de ativismo e de articulação?
Acredito que se eu fosse nomear os desafios, eu nomearia principalmente dois, os que me vem à mente. Um deles é o acesso, já começa por aí. O Vote LGBT fez uma pesquisa sobre LGBTs na pandemia, que foi publicada recentemente, e o grupo que eles conseguiram alcançar é um grupo muito marcado em termos de raça, escolaridade e, por exemplo, tem uma sub-representação considerável de travestis negras. Isso, nos faz pensar que a internet não é exatamente algo super acessível e super fácil de ser mantido, embora haja um certo debate de que cada vez mais com essa lógica dos celulares pré-pagos, em tese, teria se tornado mais mais acessível. Mas se levarmos em consideração também a precarização, a queda da renda que principalmente a pandemia vem provocando, isso tem dificultado mesmo o acesso à internet de certa forma, principalmente, se considerarmos marcadores de raça e classe.
Vejo que essa é uma questão que precisa ser considerada: por que temos tão poucos dados? Por exemplo, um dos objetivos do estudo do Vote LGBT era a saúde mental na pandemia, mas como mapeamos principalmente a saúde mental de pessoas que sequer estão tendo acesso aos mecanismos de resposta dessa pergunta? Isso não é uma crítica ao Vote LGBT, nem um pouco. Acho incrível a pesquisa deles, eles mesmos mencionam essa autocrítica, que não tem como chegar. Essa questão mostra como, por exemplo, articulações comunitárias de ruas continuam sendo tão importantes, porque o trabalho sexual e a rede comunitária a partir do trabalho sexual continua sendo tão importante.
Mas tirando esses pontos, eu diria que, para além da dificuldade de acesso, da dificuldade de sustento, eu diria que o exército de ódio que a extrema-direita tem produzido e tem articulado, principalmente, sobre minorias, tem sido muito danoso em diversos aspectos. Inclusive em termos de saúde mental, você vê pessoas trans abandonando o campo do ciberativismo e abandonando um campo de debate mais público, digamos. Não só sobre mobilização política mais formal, mas sobre compartilhamento de aspectos da existência, que é uma coisa que é absolutamente fundamental para pessoas trans – de falar, por exemplo, sobre sua experiência com hormônios, ter esse espaço sem ser acossada diariamente. Eu acho que esse exército de perseguição tem sido muito danoso e temos visto cada vez mais gente desistindo desse espaço.
Você vislumbra alguma forma de reduzirmos esses desafios? Temos algum caminho possível?
No que toca a forma de como a direita vem usando as redes, me parece imprescindível que essas empresas sejam obrigadas a algum tipo de regulamentação, porque percebemos que o controle é exercido quando é interessante. Por exemplo, recentemente, a revista Estudos Transviados tinha feito um post falando sobre sexo oral em homens trans ou pessoas trans masculinas e a postagem foi derrubada pelo Instagram. Da mesma forma, diversas postagens de travestis são derrubadas constantemente, porque aparece o mamilo. Então, a gente sabe que o mecanismo funciona. Mas quando há declarações evidentemente racistas de socialites, é preciso se mobilizar para fazer denúncias. E aí você se pergunta: o que faz com que esse mecanismo de moderação e de derrubada de postagens ou de comentários funcione para determinados sujeitos e não para outros?
Parece que a questão é que se parte do pressuposto de que esses mecanismos de resposta dessas empresas funcionam única e especificamente a partir de uma lógica de liberdade de expressão, e sabemos que não é exatamente a forma como essa coisa funciona, é evidente que não. Então, a partir do momento em que não há mecanismos protetivos que estejam relacionados especificamente a manifestações de ódio voltadas a grupos vulnerabilizados, e que haja algum tipo de desenhos de diretrizes para que haja uma resposta mais imediata, não tem muito como acreditar que essas empresas vão se responsabilizar por isso, porque não vão, não vem fazendo isso. Isso é uma coisa que a Fernanda Rosa, que estuda esse campo mais da internet, estava falando recentemente numa entrevista. Existe a pressuposição de que essas coisas funcionam quase como se fosse de uma lógica da racionalidade técnica que recusa qualquer tipo de imaginário discriminatório por trás, de processos seletivos que orientam esse tipo de derrubada, como se fosse único exclusivamente uma questão de você preencher ou não determinados critérios. E o caso da socialite racista que levou centenas e centenas de pessoas a denunciarem, e mesmo assim a postagem continuou por um tempão, mostra que não é bem assim.
Você concorda com a afirmação: “a internet tem figurado como um espaço importante para o acolhimento de denúncias de desrespeito aos direitos humanos”?
Acho que não, pelo menos em termos formais, eu diria. E não é exatamente o tipo de coisa que eu monitoro, então talvez seja mais achismo do que qualquer outra coisa. Eu acho que o cansaço de ativistas trans e o abandono de ativistas trans do ciberativismo vem mostrando que, pelo menos a resposta às denúncias não tem sido feita do modo como deveria. Principalmente a repetibilidade dos mesmos mecanismos e demora inclusive em termos de acolhimento, de reconhecimento de forma de violência, do modo como essa agressão nem é nomeada enquanto tal. Isso tem sido muito danoso, porque se por muito tempo a internet foi um espaço de compartilhamento, foi um espaço de troca, de articulação, quando você depende desses mecanismos institucionais, é só uma forma de revitimização.
Você concorda com a afirmação: “A internet tem sido um importante espaço para complexificar as noções que temos sobre violência de gênero, racismo e LGBTfobia”?
Sim. Por mais que determinadas redes não tenham exatamente o melhor formato para um debate, o Twitter, por exemplo, com fios infinitos e no fim é muito difícil de conversar em poucos caracteres, eu acredito que em termos de disseminação de conteúdo ela tenha gerado efeitos. Principalmente, em termos de nomeação, de elaboração de coisas que talvez não sejam efetivamente evidenciadas por sujeitos em seus vínculos comunitários offline. Isso tem a ver com pessoas não binárias, o quanto que debates de pessoas trans às vezes são feitos, como pessoas trans que não conhecem pessoas não binárias tem uma determinada ideia do que seria isso, por exemplo. E eu acho que os debates trazidos na internet têm sido bacanas para levar pessoas a repensarem expectativas e pressupostos.
Você acha que alguns grupos sociais estão mais vulneráveis a ataques na internet do que outros?
Acho que eu posso estar sendo muito suspeite para falar, mas eu diria que travestis negras com absoluta certeza, o que tem a ver com a articulação entre um ódio transfóbico, misógino e racista, essas coisas se articulam. Mas aqui também tem a ver com o que eu estava falando da C Riley Snorton, que é quando imagens de travestis negras ocupam espaço na mídia e quais são os termos que essa ocupação acontece. É só ver o trabalho que a Erika Hilton está fazendo de ocupar, inclusive em termos de organização do modo como a imagem dela está sendo ocupada na mídia, é genial. Porque é uma articulação que tem a ver com o debate, que tem a ver com com troca de ideias, mas também tem a ver com o regime de visualidade mesmo, de como ela se apresenta na mídia.
Isso é muito importante para romper justamente com esse lugar, que é um lugar apenas de sujeição à violência, que às vezes vem acompanhado de uma narrativa compassiva do tipo “olha, mais um caso de linchamento”, mas que carrega consigo a totalização daquela imagem, da imagem daquele sujeito, da imagem daquela pessoa, como se o único destino da vida dela fosse sofrer alguma forma de transfobia.
Eu também posso estar sendo suspeite para falar, mas eu diria que quem está tendo muita dificuldade de ocupar o debate, de ocupar esse espaço na internet hoje em dia, tem sido pessoas não binárias, porque o ataque está vindo de todos os lados. Você vê ataque da direita que associa não binariedade, inclusive o debate sobre os pronomes e tal, feito por youtubers e influenciadores não binaries, como a porta de entrada de uma ideologia de gênero que quer mudar o sexo de todo mundo – é só ver a quantidade de projetos de lei relacionados à proibição de pronomes neutros. Mas envolve ódio, desprezo e desdém também da esquerda, que acha que é risível, que acha que determinadas identidades são piadas, são modas, são coisas de gente jovem que não sabe nada da vida, que tem coisa mais importante para se fazer do que ficar se dizendo não binário porque as pessoas que estão passando fome.
É muito danoso […] ter a sua identidade sendo motivo de piada por absolutamente todo mundo, ou você ser considerado uma ameaça por absolutamente todo mundo.
De novo, vemos o problema do enquadramento binário quando até o próprio debate está sendo estabelecido de modo binário, o positivo, exclusivo, excludente e miscível, que é do tipo “ou vocês se preocupam com a fome no mundo ou você se preocupa com a identidade não binária”. Você não pode se preocupar com as duas coisas ao mesmo tempo. E isso é recorrente em pessoas militantes, em advogados que estão junto do abolicionismo penal. E é muito danoso ficar vendo isso, ter a sua identidade sendo motivo de piada por absolutamente todo mundo, ou você ser considerado uma ameaça por absolutamente todo mundo.
Nos últimos anos o debate acerca da internet ser ou não um espaço saudável para debates tem se fortalecido no Brasil. Você destacaria algum acontecimento que tenha influenciado esse debate acontecer com mais força nesse momento?
Pensando aqui muito rápido, eu diria que os ataques que as parlamentares trans sofreram recentemente foi muito emblemático em um debate inclusive intra movimento, de perceber como exatamente usar a internet e pensar em mecanismos mais estratégicos desse uso. E aí tem um pouco a ver com isso que eu estava dizendo, que a ANTRA vem tentando também ocupar esse espaço de outro modo.
Mas eu acho que uma outro ponto que tem sido muito grave e que tem levado também a um certo debate, foram as invasões de lives durante a pandemia. Isso tem provocado também uma maior discussão sobre exatamente como garantir que o debate continue chegando, continue acontecendo e continue reproduzindo isso que foi tão essencial no início, que é essa articulação de mecanismos comunitários, levando em consideração, inclusive, que agora não podemos nem se encontrar direito.
Não é apenas uma questão geográfica, é ainda maior. É sobre o modo como isso pode acontecer de forma segura para as pessoas que estão sendo envolvidas e em diversos sentidos. Segura em saber que você não está sendo monitorade, mas também seguro em termos de saúde mental, de que ficar lendo de novo, de novo e de novo mensagem dizendo para você se matar, mensagens dizendo que você é uma vergonha. Então, eu acho que isso tem sido importante.
Ao pensarmos em ataques sofridos por grupos minorizados politicamente, principalmente na internet, temos observado o uso da categoria discurso de ódio. Para você, essa categoria é útil no contexto brasileiro? Ela faz sentido em ser empregada aqui?
Acho que sim, à medida que a gente consiga ter um debate mais amplo sobre não só o que o discurso de ódio faz, mas exatamente quais são os limites da sua nomeação e quais são as dinâmicas que organizam o seu exercício. Isso tem muito a ver também com o debate que fazemos sobre violência, que vai para além de uma discussão de quais as formas de violência ou quem está sofrendo violência, é exatamente como a gente nomeia e como a gente cria sensibilidades em torno do que seria entendido como violência.
E quando eu penso em discurso de ódio, principalmente dentro desse espaço que consideraríamos de aliados, de pessoas da esquerda ou mesmo entre pessoas trans em relação às pessoas trans e pessoas trans binárias e pessoas trans não binárias, eu fico me perguntando se a associação ao ódio está inteiramente associada a uma recusa de uma identidade ou desejo de eliminação de uma identidade. Ao mesmo tempo, há outras formas de reprodução de ódio que, em termos de um iceberg, estão lá embaixo, mas sustentam essas formas limítrofes, como desdém, desprezo, não consideração, ou atribuição ao risível. Se a gente pensa em ódio não como um monolito, mas como uma estrutura capilarizada que leva a uma forma de violência, essas coisas fazem parte da constituição do que seria como ódio.
E é muito difícil termos esse debate às vezes em determinados espaços de aliança, porque as pessoas se consideram imunes à produção desse tipo de violência, desassociando da própria ideia do ódio, mas ao mesmo tempo isso não significa que não façam parte de uma cadeia de produção disso. Então, eu fico me perguntando exatamente o que estamos dizendo com isso e de que modo conseguimos criar essa cadeia semântica que permita, inclusive, a responsabilização e apontar a articulação entre a nomeação, o ato e o processo de produção de violência.
Como você definiria discurso de ódio?
Eu acho que funciona mais, para mim, pensar nele como um mecanismo de reprodução, não envolvendo apenas a fala, mas também diferentes modos de comunicar alguma coisa que envolva a recusa, a fragilização, o desejo de não existência de determinadas formas de ser, de existir, associadas a determinados sujeitos. Eu acho que é importante que não seja apenas em termos de fala, ou não seja apenas em termos verbais, porque essa produção imagética é muito danosa também.
Para mim, é importante pensar nessa articulação de diferentes modos de fazer com que esse mecanismo funcione, não a partir apenas de declarações formais como “tem que matar”, porque elas fazem parte no fim da alimentação desse “tem que matar”. E isso envolve uma série de coisas, como o desdém, o risível, a contínua produção de sujeitos como sujeitos sob suspeita, que talvez não seja tipo uma manifestação de ódio mais explícita. Mas quando você alimenta o “tem que matar”, quando determinados sujeitos são reproduzidos continuamente como inimigos ou como ameaçadores, como contaminadores de uma população, não tem como não pensar que isso alimenta o explícito.
Em 2019, o STF compreendeu a partir da Lei Anti Racista que LGBTfobia é crime. Você considera que seria um marco importante a extensão da lei para que a misoginia também fosse compreendida como um crime?
Eu acredito que isso envolve um debate mais amplo sobre o nosso sistema penal exatamente, a sua eficácia para coisas que não o sustento de uma máquina de morte, e para além da repetibilidade da sua seletividade. Então, não sei exatamente se eu diria que é interessante ser extensível, porque eu não sei se os termos a partir dos quais as coisas se dão em termos da criminalização são interessantes para pensar.
Fico pensando, por exemplo, neste ano de criminalização da LGBTfobia, o que exatamente conseguimos perceber em termos de eficácia de um debate sobre LGBTfobia de fato?
Eu realmente não sei porque eu ainda duvido muito do que vamos fazer com essa responsabilização, se vai haver mesmo responsabilizações, como é um debate que vem acontecendo há anos sobre a figura do racismo. E quais são os termos dessa responsabilização, quais vão ser as pessoas responsabilizadas exatamente? É só pensarmos em quem está ocupando a presidência. Será que essa pessoa vai ser responsabilizada, mesmo tendo absolutamente todas as provas para pensar em termos mais propriamente processuais? Temos provas documentais de LGBTfobia do presidente da República, e aí?
Eu acho que esse debate sobre o que exatamente estamos chamando de ódio, sobre o que estamos chamando de discurso de ódio, é uma das coisas mais absolutamente fundamentais quando pensamos em conflitos, em intenções que não vão se dar de modo explícito, como por exemplo entre bolsonaristas e transativistas.
Você gostaria de acrescentar mais alguma questão?
Recentemente, inclusive por conta de diversas disputas internas na comunidade trans, e que na verdade são apenas um “pé” de certas coisas que também acontecem no offline, eu acho que esse debate sobre o que exatamente estamos chamando de ódio, sobre o que estamos chamando de discurso de ódio, é uma das coisas mais absolutamente fundamentais quando pensamos em conflitos, em intenções que não vão se dar de modo explícito, como por exemplo entre bolsonaristas e transativistas.
E esse tipo de coisa não tem sido reconhecida como se deve, ou tem sido afastado com um debate que enfraquece aliades em um momento em que a gente já está super fragilizada. E concordo, estamos super fragilizado com essa extrema direita no poder, mas, ao mesmo tempo, até quando essa repetibilidade da vulnerabilização de existências, principalmente no campo da internet, que logo se torna piada, que logo se torna meme, que logo se torna risível, o quanto isso é extremamente danoso para a saúde, para a existência de sujeitos? E o quanto isso também não enfraquece o movimento? Por que com quem você vai querer produzir aliança, com pessoa que te acha uma piada ou que acha que reivindicações de uma determinada comunidade são menores?
Dessa forma, acredito que é muito importante ter esse tipo de debate, exatamente sobre o que estamos chamando com a categoria e como isso leva a uma discussão aberta sobre responsabilização que não se trata de desmoralização de lideranças ou de afastamento, cancelamento etc., mas é um debate aberto e sincero, ético, sobre máquinas de produção de ódio que são capilarizadas e que são complexas, não são apenas “tem que matar”. Eu apenas queria destacar isso mesmo porque acredito que tenha sido o mais doloroso recentemente.