Bolsa família: pensando a privacidade das titulares

Nos últimos meses, o InternetLab iniciou um projeto de pesquisa sobre implicações do Programa Bolsa Família para a privacidade de beneficiários, em sua grande maioria mulheres. Confira os primeiros resultados do projeto "Proteção social, gênero e privacidade: o caso do Programa Bolsa Família".

Artigos Desigualdades e Identidades 12.05.2020 por Julia Drummond, Mariana Valente, Natália Neris e Nathalie Fragoso

Nos últimos meses, estivemos concentradas em uma pesquisa sobre privacidade, proteção de dados, gênero e proteção social, com foco nas beneficiárias do Programa Bolsa Família. O PBF é a maior política de transferência de renda brasileira, e seu funcionamento está ligado a uma base de dados, o CadÚnico, que contempla 40% da população do país. Mais que isso, é um programa cujos beneficiários são majoritariamente do gênero feminino (quase 90%), pelo próprio desenho da política, e que é, nos últimos anos, um dos objetos favoritos das disputas políticas que permeiam o Brasil, da política stricto sensu ao debate público. A privacidade dessa parcela da população merece uma atenção especial, pelas suas condições de vulnerabilidade, e também pelo aspecto de gênero que está implicado na vulnerabilização desse direito.

Focalizado, condicional, 20% da população brasileira: o que já sabemos sobre o PBF

O Bolsa Família é um programa de transferência condicionada de renda, que alcança hoje 13,1 milhões de famílias, ou 40,8 milhões de pessoas. O principal critério de seleção de beneficiários é a renda familiar e a elegibilidade é apurada em duas linhas: a extrema pobreza, caracterizada pela renda familiar per capita mensal de até R$ 89, e a pobreza, caracterizada pela renda familiar per capita entre R$ 89,01 e R$ 178.

O objetivo do programa é o alívio imediato da extrema pobreza e a oferta de condições para superação da vulnerabilidade socioeconômica, assim como a interrupção do ciclo intergeracional da pobreza. Além da transferência direta de renda e do monitoramento das condicionalidades em saúde e educação, o programa aposta na articulação com outras políticas para atingir esses propósitos.

Dados, para que te quero?

A principal base de dados utilizada para a seleção de beneficiários e gestão do programa é chamada de CadÚnico. Criado em 2001 e concatenado à gestão do PBF em 2003, o Cadúnico é um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, e serve hoje não apenas ao PBF, mas a mais de trinta políticas públicas.

O CadÚnico inclui informações sobre características da residência, identificação de cada membro da família, escolaridade, situação de trabalho e renda, pertencimento a grupos tradicionais e específicos, que formam um conjunto de dados de referência sobre a população mais pobre do Brasil: 76.417.354 pessoas, segundo os dados de dezembro de 2019. É a partir dos dados do CadÚnico que se processa a seleção – automatizada – de beneficiários.

Para além do cadastro, o PBF vale-se de sistemas informatizados, que viabilizam a gestão do programa nos diferentes níveis da federação e permitem a coleta e comunicação de outros dados, que dizem respeito ao monitoramento das condicionalidades. As condicionalidades são compromissos que beneficiários devem assumir para receber os benefícios, e consistem na verificação da frequência escolar de crianças e adolescentes e do acompanhamento de saúde de crianças de até 7 anos de idade, gestantes e nutrizes. Uma grande quantidade de dados pessoais, inclusive sensíveis, informa, portanto, o PBF. A execução de processos cruciais da política depende do tratamento intensivo de dados pessoais: a apuração dos critérios de elegibilidade; a implementação dos mecanismos de focalização; a concessão e pagamento de benefícios; o acompanhamento de condicionalidades.

O programa compreende ainda a verificação periódica das condições de permanência, através da atualização e averiguação cadastrais. As famílias precisam fazer atualização cadastral anualmente, ou em caso de mudanças nas informações. A averiguação cadastral se processa por meio do cruzamento da base do CadÚnico com outras bases de dados do Governo Federal.

Segundo entrevistas realizadas com membros de órgãos de controle e registros da atuação do  Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas Federais (CMAP), a frequência desses cruzamentos vem aumentando nos últimos anos: “até 2016, a ação era anual (…); a partir do decorrer de 2017, o procedimento passou a ser realizado durante o exercício, de forma rotineira, distribuindo os achados ao longo do ano para tratamento pelos gestores municipais, facilitando sua dinâmica” (Miranda Alves Pereira, 2018).

Além disso, a seleção com base em informações que eram fornecidas de forma apenas declaratória começou a se basear também em filtros prévios – por exemplo, o impedimento da habilitação de famílias com membros que, não tendo declarado renda no CadÚnico, constam na base RAIS/CAGED (bases de dados alimentadas por pessoas jurídicas que empregam trabalhadores e que servem de subsídio para as políticas públicas adotadas pelo governo) (Miranda Alves Pereira, 2018). A intensificação desses procedimentos de controle está relacionado às restrições orçamentárias e financeiras decorrentes do Novo Regime Fiscal (EC 95/2016), que estabeleceu um teto de gastos públicos, e da consequente demanda por economia de gastos, redução do número e controles mais rígidos sobre indivíduos beneficiários de programas assistenciais ou previdenciários do governo.

Sob escrutínio: recurso público, titular vulnerável

As informações que alimentam o CadÚnico são declaradas pela pessoa responsável pela unidade familiar, que deve ser maior de 16 anos e preferencialmente do sexo feminino. A responsável é também a titular prioritária do programa. A titularidade feminina está prevista em lei e, segundo, analistas da política, ampara-se na percepção de que a transferência direta à mulher favorece o emprego do recurso em benefício da família (Bartolo, Fountoura, Passos, 2017). Dados oficiais indicam que atualmente 88,5% das responsáveis familiares são mulheres (Senarc, set. de 2019).

Há uma série de estudos que buscam dar conta do que significa a priorização da mulher como elemento de promoção da eficácia da política pública. Há quem venha observando que, independente da pertinência de tais decisões, estereótipos envolvendo gênero se expressam também nos mecanismos de fiscalização e controle social. Uma janela privilegiada para essas concepções são as denúncias feitas por cidadãos às Ouvidorias: embora de baixa frequência e pouco expressivas em termos de levar efetivamente bloqueios ou descadastramentos, elas refletem de forma bastante particular algumas percepções e posicionamentos dos cidadãos em torno dos beneficiários do programa, e, portanto, são importantes para a compreensão de dinâmicas de controle imperceptíveis a partir da análise do desenho da política em si. No esforço de analisar essas denúncias (que obtivemos via pedido de acesso à informação), dialogamos com outras pesquisas que vêm focando nos efeitos de políticas públicas na sociabilidade dos seus beneficiários, bem como nas moralidades construídas socialmente ou com a burocracia estatal (Marins, 2017; Milanezi, 2019).

A principal motivação das denúncias está na indicação de que determinadas pessoas não deveriam receber o benefício, por conta de sua renda. Os denunciantes mencionam a propriedade de carros, imóveis ou mesmo o recebimento de salário (na maior parte, diga-se de passagem, próximo ao mínimo nacional). Outra motivação muito recorrente diz respeito à composição familiar e manifesta-se nos questionamentos sobre a guarda física e residência de filhos crianças ou adolescentes. Também frequentes são as denúncias sobre a forma de gasto do benefício: denunciantes narram de forma detalhada como as beneficiárias não direcionam o gasto a seus filhos, ou gastam de forma considerada supérflua. Essas denúncias expressam uma avaliação sobre quem seriam as “beneficiárias legítimas”, o que envolve uma lógica de estereótipos de gênero: julgamento sobre quem são as “boas” e as “más” mães, e um reforço do vínculo entre a identidade feminina e o ethos da maternidade (para conclusões na mesma direção, ver estudos de Marins, 2017, e Bartolo, Fontoura, Passos, 2017).

Também chama atenção, do ponto de vista da privacidade de dados dos beneficiários, que em cerca de 60% das denúncias são apresentadas informações pessoais dos denunciados, dentre as quais número de CPF, nome da mãe e NIS (o número de identificação social, para recebimento de benefícios).

O nome do beneficiário, NIS e valor do benefício são de fato considerados dados públicos pelo governo brasileiro. Mas como é que os cidadãos que denunciam encontram essas informações? Identificamos ao menos quatro caminhos.

O NIS de qualquer cidadão pode ser consultado no  Portal Consulta Cidadão – CadÚnico por meio da inserção do nome, data de nascimento, nome da mãe e estado e município do beneficiário. De posse do nome, do NIS e do CPF é possível também consultar o status do benefício no Portal da Caixa Econômica Federal. No Portal da Transparência também é possível localizar, por município, o nome do beneficiário, NIS e valor do benefício. Além destes caminhos, há uma aplicação extra-oficial alimentada por dados públicos em que se podem acessar esses dados: o BolsaFamilia.Info.  Por meio desse portal – que se propõe a ajudar a “retirar fraudadores do programa” – é possível acessar nome completo, NIS, e valores de benefício, simplesmente selecionando Estado e Município do beneficiário.

Isso suscita questões sobre a base legal e proporcionalidade da exposição a que estão sujeitas as beneficiárias do PBF.

A Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa Família, de fato, prevê que serão “de acesso público a relação dos beneficiários e dos respectivos benefícios”.  O Decreto nº 5.209/2004, que a regulamenta, estabelece que o Conselho de Controle Social terá acesso aos dados e informações do PBF e prevê que a relação de beneficiários do Programa Bolsa Família deverá ser amplamente divulgada pelo Poder Público municipal e do Distrito Federal.

Um outro instrumento normativo importante é a Lei de Acesso à Informação, que, no que diz respeito à transparência ativa, estabelece que informações de interesse público devem ser divulgadas independentemente de solicitações (art. 3º, II) e que informações pessoais poderão ser divulgadas, quando consentido, conforme previsto em lei (art. 31, II), ou diante de interesse público preponderante (art. 31, § 3º, V), ou ainda diante do envolvimento com irregularidades.

No caso da folha de pagamento do PBF, observamos que sua divulgação foi assumida como medida de transparência ativa, em conformidade com a Lei nº 10.836/2004 e o Decreto nº 5.209/2004. Essas medidas, ainda que autorizadas por lei, estão em possível tensão com a Lei Geral de Proteção de Dados, extrapolam as obrigações literalmente estabelecidas na Lei de Acesso à Informação, e não contemplam adequadamente a proporcionalidade da divulgação.

Afinal, a ampla divulgação desses dados envolve riscos já comprovados. Entre 2018 e este ano, ao menos três golpes envolvendo mensagens de WhatsApp prometiam recebimento de bônus ao preencher formulário, benefício adicional – o 13o salário, bem como vales para compra de material escolar e instalavam vírus nos dispositivos de beneficiários. Algo semelhante ocorreu em 2018. Nas últimas eleições presidenciais, descobriu-se que um candidato estava direcionando propaganda especificamente para beneficiários do programa, também por WhatsApp.

Ainda que a gestão do programa envolva diversos órgãos de diferentes níveis da federação, sua operação já prevê abundantes formas de compartilhamento e estratégias de fiscalização e controle, o que coloca em questão a necessidade da divulgação rotineira e geral dessas informações de maneira ativa ao público.

Alertas e desdobramentos

O estudo ainda está em fase pesquisa e produção. Alguns alertas já se colocam, no entanto.

Os avanços na tecnologia e o incremento das capacidades de processamento de dados permitem a crescente coleta, tratamento, compartilhamento e, segundo reportado em algumas entrevistas que realizamos, um esperado aumento da eficiência e o aperfeiçoamento da focalização da política – que, embora frequentemente problematizada, é um traço constitutivo do PBF.

Especialmente diante da premente entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, buscamos endereçar no desenvolvimento deste estudo alguns dos eventuais problemas sistêmicos que podem surgir em tal contexto, como a coleta excessiva de dados; a opacidade de sistemas e infraestrutura; a tomada de decisões pouco abertas, inclusivas e transparentes; falhas nos mecanismos de responsabilização; e segurança dos sistemas. Esta última questão é exacerbada pela necessidade de se envolverem diferentes agentes no tratamento destes dados (seja para a prestação de serviços, execução de políticas, seja para a fiscalização), pela deficiente proteção de dados pelo setor público (embora investimentos recentes tenham sido feitos nesse sentido no PBF), e pela posição vulnerável em que se encontram as afetadas. Surgem também questões sobre o compartilhamento de dados e seu emprego para outros fins, como, por exemplo, comentamos no âmbito da discussão sobre a recente criação do Cadastro Base.

O reconhecimento da natureza interdependente dos direitos humanos e da necessidade da incorporação da proteção da privacidade nos sistemas de proteção social é especialmente importante. Nossos próximos passos partirão dessa premissa, por entendermos que as mulheres em situação de pobreza e extrema pobreza não devem ter de escolher entre privacidade – possivelmente ameaçada por uma maior vigilância online e offline que os demais cidadãos e pela exploração de dados –  e seguridade social, segurança alimentar e uma prestação que alivia, mas não resgata da pobreza (Souza et al; 2019:10).

Pesquisa: Julia Drummond, Mariana Valente, Natália Neris e Nathalie Fragoso

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