Neutralidade da Rede: questões atuais e futuras em debate
Por Alessandra Gomes*
A neutralidade da rede diz que todos os dados que trafegam na rede devem ser tratados da mesma forma e com a mesma velocidade. Este conceito também é conhecido como não discriminação de pacotes, onde todos os pacotes devem passar pela rede sem sofrer atrasos ou bloqueios seletivos. Na prática, isso significa que os provedores de conexão não podem priorizar o acesso a uma aplicação em detrimento a outra.
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O tema foi um dos principais assuntos durante o processo de formulação da regra no texto do Marco Civil da Internet, aprovado em 2014. Na época, a regra da neutralidade da rede foi ponto de discórdia entre diferentes setores, o que culminou em um impasse que levou meses para ser resolvido. Dessa forma, a redação final do Artigo 9º ficou assim:
Art. 9º. O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
O Marco Civil e o decreto posterior que o regulamenta (nº 8771/2016) garantem a neutralidade de rede no Brasil, vedam priorização de pacotes em razão de práticas comerciais, com a ressalva de duas pontuais exceções — “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações” e “priorização de serviços de emergência”.
Para fala do tema da neutralidade de rede e abordar as controvérsias sobre o assunto quando posto em prática, convidamos os professores Elias Duarte e Luis Carlos Bona, do Departamento de Informática da Universidade Federal do Paraná, e o doutorando Thiago Garrett, todos eles pesquisadores de neutralidade de rede há mais de 5 anos.
Em uma conversa, resumida abaixo e disponível na íntegra em formato de áudio (veja abaixo), os pesquisadores partiram do conceito de neutralidade de rede, comentaram argumentos pró e contra em temas polêmicos como zero rating, e apontaram questões futuras e importantes a serem observadas. Confira:
O conceito de neutralidade
Para abordar os conceitos básicos relacionados à neutralidade da rede, os professores partiram do modo como a internet foi pensada e construída, ancorada na ideia de que o modo como os pontos da sua estrutura lidariam com o conteúdo por ela transmitido seria fundamentalmente isonômico.
“A internet foi uma rede projetada num conceito de melhor esforço. Todos os roteadores de internet devem ser muito simples e tudo o que eles devem fazer é simplesmente encaminhar o pacote em direção ao destino sem tomar nenhum tipo de decisão preocupado em dar qualidade de serviço para alguém, sem diferenciar um pacote de outro, dado qual é a sua origem e destino.”
Prof. Luis Carlos Bona
Apesar da regra, acordos comerciais entre provedores de aplicações (como Netflix) e de conexão que envolviam tratamento especial de pacotes de serviços deixaram especialistas no assunto em alerta. Havia nessas práticas o risco de o princípio da neutralidade de rede ser violado.
O prof. Elias Duarte recorreu a uma analogia com carros e estradas para exemplificar o problema: “A gente não pode achar que os pedágios das autoestradas vão começar a dar uma estrada melhor para quem vai a um restaurante e dar uma estrada pior para quem vai a outro (…) porque o dono do restaurante grande fez um acordo com a empresa de pedágio”.
Prós e contras
O debate sobre a regulamentação da neutralidade da rede permanece bastante ativo e envolve diferentes temas. Um deles está centrado na inovação. De um lado, contrários à neutralidade de rede absoluta defendem a realização de acordos comerciais que permitam a obtenção de vantagens competitivas na rede.
Já os defensores da neutralidade, alertam que esta brecha afetaria diretamente a inovação no mercado digital. De acordo com o prof. Elias Duarte, “se a Netflix pagar a rede para ela funcionar melhor, qual é a chance de aparecer uma outra empresa entregando vídeo com a mesma qualidade?”.
Outro ponto de discórdia é a diferenciação no tratamento dos pacotes. De um lado, provedores de conexão apontam a dificuldade de realizar a transmissão isonômica de dados, pois alguns conteúdos — como vídeos de alta qualidade –, exigem maior demanda da rede do que outras, como um simples e-mail.
O prof. Elias Duarte explica que, neste caso, a violação da neutralidade da rede se daria pela diferenciação do tráfego de conteúdos similares. “O que não pode é duas aplicações equivalentes, que fazem exatamente a mesma coisa, têm a mesma funcionalidade, uma receber da infraestrutura da rede todo o suporte, toda a banda que ela quiser, e a outra ser estrangulada para justamente ter um desempenho pior”.
Sobre o problema, o Prof. Luis Bona afirma que a solução não deveria envolver diferenciação de tráfego, mas sim, investimento por partes do provedor de conexão. “Muitas vezes ele prefere estrangular para não ter que fazer um upgrade em infraestrutura. Tudo passa por investimento no final das contas”, diz.
Por fim, ainda sobre infraestrutura, o Prof. Luis Bona fala sobre a relação entre a regulamentação da neutralidade da rede e o problema de se levar Internet de qualidade para áreas mais afastadas dos centros do Brasil. Ele esclarece que no país a expansão da rede está relacionada ao pagamento de conexões e que onde se tem “público pequeno, muitas vezes de baixa renda e que não vai pagar a infraestrutura que tiver que chegar lá . Só vai chegar se for obrigado por uma regulamentação”.
Polêmicas
Ainda sobre polêmicas, algumas delas em pauta desde o processo de construção do Marco Civil da Internet, abordamos com os pesquisadores da UFPR a questão da introdução de franquia para banda larga fixa pelas empresas de conexão, o zero-rating e ainda a futura implantação da rede 5G.
Franquia
Desde 2016, algumas operadoras brasileiras passaram a oferecer planos com limites de dados a serem consumidos pelo consumidor, não se resumindo mais à oferta de pacotes por velocidade. A Anatel, então, publicou medida cautelar proibindo a conduta, mas o tema ainda aguarda uma decisão final da agência.
Sobre o tema, os pesquisadores da UFPR se colocam contra a prática de franquia, porém concordaram que esta implantação não viola os princípios da neutralidade da rede. Eles concordam que a franquia representa uma nova forma de cobrança em que se paga pelo quanto se usou. Em uma outra analogia, seria semelhante ao que acontece em alguns sistemas de transporte urbano onde se cobra valores diferenciados de acordo com a distância percorrida.
Zero-rating
Sobre o zero-rating, também conhecido como taxa zero, onde se oferecem acesso gratuito e ilimitado a algumas aplicações, todos concordaram que tecnicamente esta prática fere os princípios da neutralidade da rede. Como exemplo, o prof. Elias Duarte e o doutorando Thiago Garrett colocam uma comparação entre um cliente que utiliza Whatsapp e Telegram. Em uma situação de zero-rating, chegará um momento em que “os pacotes de uma aplicação vão ser bloqueados enquanto os da outra aplicação vão passar livremente e isso é, tecnicamente, por definição, uma violação da neutralidade da rede.”
5G
Por fim, foi abordada a questão do 5G, em que a possibilidade de fatiamento da rede (network slicing) pode dar aos provedores a chance de diferenciar tráfegos com qualidades diversas, ferindo, assim, os princípios da neutralidade de rede como a conhecemos hoje. Os professores da UFPR falam sobre as vantagens do fatiamento da rede para a evolução da internet e opinam que o 5G trará novas possibilidades que poderão fazer com que a neutralidade da rede seja repensada. O prof. Luis Bona cita um exemplo relacionado à rede de carros autônomos: “Talvez seja justo pensar que os pacotes do seu carro dizendo que vão colidir com outro carro tenham prioridade”.
Neutralidade em breve
Finalizamos nossa conversa com considerações e questionamentos relacionados ao futuro da internet e da neutralidade da rede. O prof. Luis Bona destaca a importância do debate sobre a privacidade do usuário, fiscalização e maior transparência para a rede e sobre as futuras questões que a implantação do 5G pode trazer. O prof. Elias complementa reforçando a importância da fiscalização junto com a regulamentação. Já Garrett alerta para a importância de lutar para que a sociedade não perca o que já foi conquistado em termos de garantias na rede no Brasil.
Aprofunde-se
Para saber mais sobre a neutralidade da rede:
- A Proposal for Network Neutrality: artigo de 2002 escrito pelo professor Tim Wu, da Columbia Law School.
- Neutralidade da Rede: Um Guia para Discussão: Guia online escrito por Pedro Henrique Soares Ramos.
- Fiscalização da Neutralidade da Rede e seu Impacto na Evolução da Internet: Tese de doutorado em Ciência da Computação defendida por Ligia Eliana Setenareski na Universidade Federal do Paraná (2017).
- Neutralidade da rede: o debate continua: Artigo de Francisco Brito Cruz e Jonas Coelho Marchezan no site do InternetLab (2016).
- 5G Exige Rediscussão Imediata da Neutralidade da Rede: Artigo de autoria de Ana Paula Costa e Pedro Lobo publicado no portal Convergência Digital (2018)
- Net Neutrality vs. 5G: What to expect from the upcoming EU review?: artigo da organização austríaca Epicenter.works sobre o debate sobre eventuais mudanças na regra da neutralidade de rede europeia com a introdução da rede 5G (2018).
- O que está em jogo na regulamentação do Marco Civil? (2015). Relatório produzido pela equipe do InternetLab sobre o debate público promovido pelo Ministério da Justiça para a regulamentação da lei 12.965/2014.
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Alessandra Gomes é tech fellow no InternetLab.