“É uma geração que enfrenta problemas ainda sem nome”, diz psicanalista sobre debate político nas redes

Notícias Informação e Política 13.09.2018 por Maria Luciano

Christian Dunker é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP. Em entrevista conduzida por Gabriela Forti Teixeira e Luiz Fernando Silva Loschiavo dos Santos, ele discutiu mudanças nas interações sociais proporcionadas pelas plataformas digitais e seus impactos no debate público. A entrevista faz parte de uma série realizada por alunos integrantes do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade (NDIS) da Faculdade de Direito da USP que discutiram, ao longo do primeiro semestre de 2018, questões ligadas à regulação de campanhas políticas e eleitorais na internet, desinformação e liberdade de expressão na rede.

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O psicanalista Christian Dunker conversou com participantes do NDIS USP sobre mudanças causadas pelas plataformas digitais nas interações entre as pessoas e suas repercussões no debate público.

 

Como você avalia a interação política dos brasileiros nas redes sociais a partir de sua perspectiva psicanalítica? Na sua opinião, qual a relação entre a polarização política que temos presenciado no Brasil e o uso massivo das redes sociais? Nesse sentido, o qual o peso das ideias de “viés de confirmação” (essa tendência de se lembrar ou interpretar informações de forma a confirmar crenças ou hipóteses pré-adquiridas) e do determinismo tecnológico (o entendimento que a tecnologia determinaria as relações políticas ou sociais)?

Christian Dunker – Existem vários processos que estão acontecendo de forma concomitante e que interferem na atitude política, particularmente no contexto destas eleições. O primeiro diz respeito ao número de pessoas que estão participando do debate. Há a emergência de um novo grupo bastante extenso e o surgimento de novos atores políticos – não no sentido de cidadãos que podem exercer o voto, mas sim de cidadãos que podem falar sobre temáticas políticas num ambiente de acesso de, atualmente, cerca de 75% da população brasileira ,e que tinha um acesso bastante restrito a discussões de natureza política anteriormente. Creio que boa parte da transformação discursiva para uma polarização, um ambiente hostil, e um sentimento de irritação coletivo com essa temática no ambiente virtual decorre da falta de formação discursiva para a participação em um diálogo cuja estrutura é antagonista, baseada na diversidade e na oposição de ideias. E esse diálogo convoca um número bastante grande, de pelo menos 40 milhões de pessoas, que estão tendo essa experiência, às vezes pela primeira vez, de conversar com outras pessoas em uma situação que tem muitas características diferentes como, por exemplo, você não estar em presença do outro, não ver a face do outro no momento do diálogo.

Um segundo elemento são as transformações inerentes aos processos institucionais brasileiros de 2013 até hoje, onde a gente tem uma espécie de ruptura, que pode ser lida e interpretada como quiserem: institucional ou não, legítima ou ilegítima. De qualquer forma, o que não se pode negar é o entendimento subjetivo das pessoas de que houve uma descontinuidade no processo. Quando há uma descontinuidade em processos institucionais aparece uma espécie de efeito cascata, que é a concorrência por novas posições que vão querer se empoderar. Então, isso gera um duplo movimento de opressão e silenciamento daqueles que têm menos acesso à fala, quer pela distribuição de recursos de capital econômico, quer pela distribuição também de capital cultural e social dentro do contexto digital. É importante lembrar que quando falamos em rede social falamos em amigos, nas pessoas que são o capital social umas das outras. Esse é um segundo fator a ser considerado.

Um terceiro elemento para poder entender da peculiaridade dessa conversa no ambiente digital diz respeito à formação de condomínios digitais, bolhas ou aos processos narcísicos em que a diferença vai sendo gradativamente excluída – seja porque você dá um unfollow, seja porque você produz barreiras simbólicas de nível de discurso ou de tonalidade afetiva dominante. Ao entrar em determinado site ou página você está ciente de que você vai entrar em um ambiente de ódio, de inveja, de forma que essa saturação produz um afastamento de pessoas que vão seguindo uma lógica defensiva, que tem uma propriedade narcísica ou uma variante narcísica muito conhecida, o narcisismo das pequenas diferenças. Nele há a produção de um ambiente artificial em que as pessoas são iguais a você. É como se a extensão do ego aumentasse e o tamanho do mundo diminuísse, tornando as pessoas mais sensíveis e reativas à intrusão de uma diferença. Como esse é um processo defensivo, quando uma diferença aparece ela é sentida como uma intrusão, como se alguém estivesse violando uma espécie de regra tácita de que “aqui falamos a mesma coisa e de forma igual”. Aqui existe uma espécie de código discursivo. A cilada neste tipo de código discursivo é que ele é formado por momentos de afirmação periódica: de tempos em tempos é preciso confirmar que somos iguais. E o que confirma isso é o ódio por um terceiro.

 

Considerando que segundo pesquisas recentes os brasileiros passam cerca de 3 horas diárias navegando nas redes sociais, como você vê a relação entre o “viés de confirmação” e o modelo de negócio estabelecido por elas, baseado em publicidade comportamental direcionada a partir de informações pessoais? Quais os reflexos dessa relação na forma como as pessoas agem?

Christian Dunker – O conceito do “viés de confirmação”, que vem da teoria cognitiva, funciona bem quando olhamos de longe o funcionamento das pessoas, de que elas estão frequentemente reconfirmando os seus esquemas argumentativos, os seus entendimentos de quem são os seus interlocutores, de qual é a sua posição na geografia de um determinado assunto. Isso é uma verdade, da gente encontrar sempre no mundo aquilo que a gente já pensa sobre ele. Só que isso tem um efeito colateral que alguns autores chamam de “o cansaço de si”, já tematizado por Fernando Pessoa: precisamos inventar uma poética capaz de tirar a gente para fora de nós mesmos, pois a ideia de que eu já encontro o que eu já sei e o que eu já sou também gera uma certa insatisfação. São dois processos que estão em um equilíbrio dinâmico. O viés de confirmação, quando se realiza excessivamente bem, começa a inquietar as pessoas e a deixá-las com o sentimento de apatia, tédio e irrelevância. Alguém que tenha uma tendência para a autoconfirmação pragmática do seu ponto de vista é alguém que está procurando encrenca, que vai ali dizer alguma coisa que não vão aceitar. Por que essa pessoa está fazendo isso? Tem uma espécie de autoengano envolvido no viés de confirmação dela.

O segundo ponto, sobre a estrutura do negócio rede social e a sua ligação a um certo padrão de continuidade de consumo. Assim, se você consumiu x, sua tendência de consumir x’ é maior, e de x’’maior ainda. Chamamos isso de “metonímia do consumo”. Então a maior parte dos algoritmos parte dessa intuição sobre o funcionamento humano, de que você quer mais do mesmo. Isso tem um certo efeito limitado quando pensamos em propaganda, em processos tradicionais de marketing para um público que é muito ciente desta diferença discursiva. Uma coisa é vender um objeto, experiência ou produto, outra coisa é opinar sobre isso. Então você tem uma franja que vai dos discursos instituídos passando pelos influenciadores digitais, pelos seus pequenos grupos de amigos, pela sua comunidade mais ou menos distante de escola, até passando por processos de merchandising indiretamente comprados por empresas. Mas só para dizer que essa ideia de como funciona um big data e uma leitura de padrões de consumo, as pessoas se defendem disso e não estão exatamente ingênuas ou desinformadas a ponto de separar formação de padrões de consumo e de opiniões, que é o que você vai tentando produzir nesta franja intermediária, e disposições para formar opiniões, consensos, padrões de moda, o que é um campo mais disputável. Aí então existe um outro problema sobre as manipulações indiretas, sobre a divisão de qual postagem vai para qual grupo. Isso é uma caixa preta porque pode ser manipulado. Uma pesquisa recente demonstrou como essa manipulação pode modular o humor das pessoas através da entrega de postagens pessimistas ou otimistas sem conteúdo político; de um lado gatinhos sorridentes, e do outro desastres ecológicos. Isso, ao final, interfere no voto das pessoas, uma vez que candidatos que falam com uma perspectiva pessimista se beneficiam de um humor pessimista e os candidatos com uma perspectiva otimista vão se beneficiar do humor otimista. Isso coloca uma nova instanciação semi-institucional de propaganda política completamente impensado e que faz eco com uma das piores estratégias de manipulação da opinião pública. Porque não é uma manipulação de ideias, teses, entendimento sobre um assunto, mas sim da inclinação subjetiva de alguém. Isso é um problema e acho que vamos precisar de um outro tipo de direito para enfrentar isso. O direito posto não se dá bem com esses novos códigos. É necessário um direito que pede a participação da comunidade e ações diretas mais pontuais e em tempo real. Acredito que a dificuldade jurídica que temos para lidar com isso é que a temporalidade decisional dos processos jurídicos tal qual temos hoje é completamente insuficiente. Se demorar alguns dias para tirar do ar um fake news, isso pode produzir efeitos irreparáveis.

 

Em seu livro “Reinvenção da Intimidade – Políticas do sofrimento cotidiano” você identifica uma ascensão de manifestações odiosas no debate político com a consequente redução das diferenças à ideias de irracionalidade e de patologias. Na sua visão, como esse tipo de diagnóstico de tempo interage com mudanças na mídia, como aparecimento das redes sociais e outras ferramentas de comunicação e o declínio dos jornais impressos?

Christian Dunker – Nós não temos ainda muito claro a nossa posição no interior desse processo macroscópico, global e que não tem volta. Vocês [referência aos entrevistadores] são a primeira geração que foi nascida e criada como nativos digitais. Então nós não temos os efeitos desse padrão de criação nem os diagnósticos do que vai ser muito prejudicial nem do que vai ser inofensivo. Não temos padrões de intervenção terapêutica, nem limites e fronteiras entre usos e abusos de práticas que têm estrutura digital. É completamente selvagem o que está acontecendo, mas isso não é um problema em si. Eu acho que o problema maior é não termos consciência de que somos uma primeira geração que está enfrentando problemas que não têm nome, para os quais a nossa equivalência da linguagem oral, da estrutura epistolar, por exemplo, não se duplicam no tipo de laço social, no tipo de racionalidade que se encontra a partir da vida digital. Então isso deveria ter ou inspirar respostas no sentido de debater sobre esse conjunto de problemas, temas e matérias. Um debate que não é só uma investigação epistêmica de como isso funciona, mas que exige respostas éticas mais rápidas do que nós estamos conseguindo produzir. Por quê? Porque nosso aparato jurídico não está no mesmo tempo, nem nosso aparato político. Isso gera muita especulação, incerteza, mas é um esforço coletivo que precisa ter um pouco mais de método. Então essa hipótese deste livro é de que, nesse novo tipo de organização, o público e privado são completamente redefinidos nessa esfera. A rede social é coisa pública ou privada? Do ponto de vista clássico, é indeterminado. Ela tem usos públicos e privados, usos privados que se alternam com o público, usos que dissolvem a fronteira do público, usos que expandem a fronteira do privado. Independente das geografias que são diversas e complexas entre o público e o privado, essa alteração entre um e outro tem um efeito direto e transversal que é a perda e o declínio da intimidade, porque num ambiente em que o público e privado se alteram dessa forma, a sua intimidade vira um assunto ou privado ou público. Intimidade não é privacidade. Intimidade é partilha de indeterminação, partilha de incerteza. A resposta óbvia de partilha de incerteza em um ambiente predatório é recuar para fronteiras de privacidade, e aí você indiretamente vai tornando e produzindo subjetividades excessivamente deficitárias de experiências de intimidade. Essa é uma hipótese para entender a curva ascendente de suicídio, de sofrimento narcísico, de sofrimento em instituições (universidades ou de trabalho). Porque aquele espaço em que você deveria ter uma experiência de amizade enquanto indeterminação de sentido se transforma em mais uma coisa que você tem que administrar, regular e pensar segundo a lógica do seu capital social, cultural e financeiro. Isso produz efeitos agudos de solidão – e é paradoxal. Você tem tanta comunicação com o outro, como é que você ao mesmo tempo se sente mais e mais solitário? Pela qualidade experiencial do estar com o outro.

 

Recentemente o Facebook firmou parcerias com agências de checagem de fatos em 14 países como uma tentativa de impedir a propagação das notícias falsas. Embora o programa tenha sido bem aceito no exterior, no Brasil a medida provocou uma forte reação de usuários contrários, principalmente pois algumas das agências de checagem dos fatos foram por eles consideradas partidárias e tendenciosas. Neste sentido, de que forma você vê a ascensão da ideia de checagem de fatos como uma resposta à disseminação de informações falsas nas redes? Qual a sua reflexão sobre a discussão entre verdade e mentira na política hoje?

Christian Dunker – Lembra que no começo nós falamos de três processos que estão acontecendo em concomitância, né? Um deles é essa descontinuidade política. Quando você tem um golpe, ele tende a produzir um efeito de repetição daquele gesto, porque isso interfere na forma como você representa a relação entre poder e autoridade. Então, se lá em cima pode-se fazer isso, eu aqui embaixo também posso. Por isso que uma descontinuidade como essa produz uma opressão ainda maior das minorias: quem estava mais desfavorecido vai ficar mais ainda, porque você está produzindo uma mudança nas regras do jogos e uma percepção social de que há uma mudança nas regras do jogo, e que portanto ela pode fazer o seu jogo – “empreenda também você o seu pequeno golpe”. Mas isso só pode funcionar, tanto o golpe no primeiro sentido, como o golpe dentro do golpe, se você tiver assim a destituição das instâncias que são responsáveis por cuidar da conversa política, cuidar da conversa sobre diferenças. Você tem mediadores profissionais, pessoas, instituições e discursos que historicamente fazem isso. Vou dar alguns exemplos inusitados. Os museus e cultura são mediadores que nos dizem: “olha, essa conversa eu guardei, ela está aqui”. Também a imprensa: “olha, gente, temos uma suspeição de posição; por mais que a gente não consiga, nós buscamos a imparcialidade”. Também universidade e intelectuais, sejam ligados à educação formal, sejam intelectuais populares, como coletivos de artistas e assim por diante. Terceiro exemplo, as formas jurídicas, elas têm uma função de fazer mediação para debates e conflitos. O que acontece quando a gente tem uma descontinuidade como essa? Você precisa desautorizar todas essas instâncias, precisa dizer: “olha, gente, essa horizontalidade que a gente tem e que foi uma das coisas mais legais que veio junto  com a vida digital; quer dizer, a gente não pensa mais vertical e institucionalmente, a gente pode pensar em horizontal, a gente pode fazer crowdfundings, a gente pode pensar o mundo sem essas posições instituídas que colocam um lá em cima e outro aqui embaixo, então esse é um ganho incrível e é um ganho democratizante”. Agora, o que que você tem, vamos dizer assim, como possibilidade aberta por isso? Uma espécie de transporte por essa regra para uma destituição dos mediadores de conflito. Por quê? Porque isso interessa aqueles que estão em posição contingencialmente favorável. Qualquer instância que você ponha a mediar, checar fatos, e dizer o que vale ou não no jogo, qualquer um que entre nessa posição, independente do que ele fale, será assim imediatamente atacado e destituído. Por quê? Porque você está se pondo num lugar. Para a esquerda, esse argumento tem a valência da elite, seja da elite universitária, seja da elite jurídica, a elite que para eles nos levou a esse ponto, de forma que estão todos desautorizados. Então, essa posição de alguém que se coloca em uma situação de que sabe mais que os outros não é aceita. Alguém que tenha uma posição de saber instituído – veja aí a diferença entre saber e poder é crucial -, mas ela está dissolvida. A direita vai argumentar algo diferente, mas que nos leva ao mesmo produto: de que esses que estão aí são os que nos levaram para o “buraco”, são a imprensa, que é de esquerda; nossos universitários, que são corruptos e de esquerda; esse Judiciário que não se entende, Gilmar Mendes e companhia. Então onde é que está essa ligação orgânica entre poder e saber? Na família. Acredite no ‘papis’, porque ele é a única autoridade realmente constituída, super vertical. Para todo o resto horizontalidade, com a exceção, com essa posição do tirano, que sou eu, que sou o pai de todos. Sou eu que tenho uma relação contigo que é pessoal, autêntica, direta.  Os dois pontos pegam carona nesse déficit de autenticidade e intimidade. Um está dizendo: “vocês não me representam, eu não reconheço como legítimo isso, vocês são inautênticos”. E o outro está dizendo assim: “é verdade, vocês são inautênticos e o verdadeiro autêntico sou eu”! Isso é uma cilada produzida pela situação, e que leva a um curioso enlace entre posições opostas que se alimentam para confirmar esse repúdio, que qualquer organização da conversa venha a se estabelecer. Isso é bom para os negócios neoliberais, que produzem anomia para vender segurança.

 

A nova legislação eleitoral abriu a possibilidade do “impulsionamento” de anúncios eleitorais na Internet, sendo a eleição de 2018 a primeira na qual será admitido algum tipo de propaganda paga nas redes. É sabido que o impulsionamento permite uma seleção do público-alvo do anúncio com base em alguns dos seus dados pessoais, tais como geolocalização, idade e gênero, além das suas preferências demonstradas na rede por suas interações. O que você acha que podemos esperar como efeito desse novo uso da rede? Na sua visão, que tendências ou aspectos esse marketing eleitoral de “microdirecionado” com base em informações pessoais pode provocar?

Christian Dunker – Isso é uma coisa tão anacrônica, né? Você pode fazer um santinho eletrônico, e distribui seu santinho eletrônico para a massa. Essa é a ideia, né? Isso desconhece que uma campanha como a de Obama, mesmo a de Trump, não foi ganha com santinhos eleitorais. Ela foi ganha com pessoas opinando pessoalmente e não dizendo que elas são partidárias de x ou de y. Essa ideia da embalagem, a gente pode discutir com isso, porque tem a ver com fundo eleitoral, toda essa miséria de reflexão política que nesse caso é ridículo. É uma maneira de continuar a evitar pensar em uma reforma política que leva em conta novas interações sociais, digitais. Isso é mais um caso do golpe, dentro do golpe dentro do golpe. Isso é para você escoar o dinheiro do fundo eleitoral. A verdadeira questão não está aí. O que a gente precisaria pensar é como, nesse novo ambiente, onde você tem espaço e extensão, analisar de maneira circunstanciada e qualificar e interpretar programas de governo, porque agora a coisa está mais complicada, agora eu quero ver a história do sujeito, o portfólio jurídico dele, porque agora eu tenho acesso a isso, às calamidades que ele deixou rastro. Eu tenho como fazer análise do discurso do sujeito. São os recursos de renovação da conversa política. E um dos crimes políticos que a gente tem feito é ignorar como o universo digital facilita a ação democrática direta.

 

Em recente episódio, revelações sobre a empresa de consultoria política Cambridge Analytica tiveram grande repercussão ao vender para campanhas políticas serviços baseados em dados pessoais extraídos das redes sociais por meio de um desses “testes de personalidade” que aparecem na rede. A partir desses dados e de estudos psicométricos, ex-funcionários da empresa alegaram que era possível traçar perfis psíquicos e políticos detalhados, a partir dos quais seria possível identificar os discursos que aquele usuário receberia de modo positivo e aqueles que reprovaria. A eleição de Donald Trump, um dos principais clientes da empresa britânica, foi bastante questionada por tal tipo de tática utilizada. Como você avalia o uso de técnicas como essa no marketing político? Qual diagnóstico é possível  fazer a partir da psicanálise?

Christian Dunker – Eu acho que tem um efeito posicional dessa experiência. Acho que se hoje a gente fizesse uma nova eleição nos Estados Unidos o resultado seria diferente. Nós estamos assim às voltas com os primeiros espertalhões que usaram pela primeira vez. Depois que você usa pela primeira vez e dá certo, a segunda vez já tem essa experiência atrás de si, as pessoas estão mais prevenidas, começa a ver uma consciência. Sobre a formação de perfis psicológicos ou discursivos, me parece uma coisa muito interessante, e aí acredito que existe uma pressão política, uma demanda que a gente poderia forçar, que é indagar como a Cambridge Analytica se tornou possível. Foi pela falta de transparência, e pela indisponibilidade de certos recursos de big data que só eles têm.

Essa semana temos o resultado de quantas horas você está no Facebook a partir de um aplicativo que permite a você sacar que ficou mais de 3 horas. As TVs europeias também já vêm com anúncio de que você está assistindo a TV a mais de 4 horas, e essa modulação da sua experiência no tempo é muito importante. Essa consciência digital provavelmente dará surgimento a um novo tipo de cidadania. Pessoas que estão desprovidas dos meios ou da formação ou da educação para ter uma consciência da sua posição digital, assim como hoje temos pessoas que têm mais dificuldade de ter uma consciência da sua posição de classe, gênero, etno-racial, política, poder, saber. Também haverá pessoas com dificuldade para ter consciência do seu posicionamento digital, e esse é um problema que o universo digital vai recapear, ele não vai nem resolver nem necessariamente extrapolar. Então o princípio da transparência é muito importante, o princípio da educação crítica para a leitura e interpretação da sua experiência digital é muito importante, isso vai vir como uma conversa e uma conversa que veio para ficar.

 

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Entrevistadores: Gabriela Forti Teixeira e Luiz Fernando Silva Loschiavo dos Santos

Edição: Maria Luciano, Francisco Brito Cruz e Juliana Pacetta Ruiz

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