Imagem ilustrativa composta por traços e círculos em diferentes formatos em fundo cinza

Em meio a discussão sobre aplicativos, Lab lança livro sobre ‘sharing economy’

Notícias 31.10.2017 por Pedro de Paula, Beatriz Kira e Rafael Augusto Ferreira Zanatta

O InternetLab lança essa semana o livro “Economias do Compartilhamento e o Direito, resultado do projeto “Economia do compartilhamento e seus desafios regulatórios”, desenvolvido entre 2015 e 2016, que teve por objetivo avançar nos debates sobre as tensões regulatórias em torno de novos modelos de negócios baseados em tecnologias da informação e uso de recursos ociosos, com especial atenção para as empresas que atuam no setor de transporte individual.

Propostas legislativas visando a regulamentação dessas novas plataformas têm sido debatidas em todo Brasil a nível municipal e também pelo Congresso Nacional. Um desses projetos é o PLC 28/2017, que será apreciado hoje pelo Senado Federal. A proposta prevê, entre outras medidas, a necessidade de autorização prévia dos Municípios e Distrito Federal para que motoristas prestem o serviço de transporte individual de passageiros, alterando significativamente a forma como algumas empresas de tecnologia atualmente operam neste mercado.

Os achados de pesquisa discutidos no livro indicam que a regulação de atividades econômicas como o transporte individual de passageiros se funda na existência de falhas de mercado e na necessidade de promoção do interesse público e de inserção de critérios de justiça em determinados mercados, como redistribuição de riquezas e universalização de serviços. Em ambientes democráticos, a regulação das empresas de tecnologia que atuam neste setor possui caráter experimental e é construída por meio de processos abertos, participativos e auditáveis.

Inovações tecnológicas trazem consigo mudanças nas razões para se regular e nas formas de fazê-lo, para dar conta de novas realidades. Isso, contudo, não implica saber, de antemão, a forma e o conteúdo dos novos parâmetros da regulação. As economias do compartilhamento trazem consigo conflitos reais que demandam a construção de arcabouços regulatórios debatidos e construídos democraticamente. O projeto em análise pelo Senado, no entanto, parece ir na contramão de tais aprendizados. Houve pouco tempo para discussão do substitutivo apresentado em 24 de outubro. A aceleração da votação do Senado em regime de urgência atrapalha a construção democrática do modelo regulatório e acirra os ânimos entre setores tradicionais, novos empreendimentos e consumidores.

É em meio a este importante debate e buscando contribuir para discussão regulatória que lançamos essa semana esse livro, fruto das reflexões desenvolvidas ao longo do projeto. A obra reúne artigos escritos por especialistas de diversos campos e discute que tipo de economia existe por trás dessas plataformas globais e qual seria o papel do direito no fomento à inovação e na proteção do interesse público, em setores como transporte e habitação.

Capa do livro "Economias do Compartilhamento e o Direito", da Editora Juruá, composta por um fundo branco e duas bolas, um rosa e uma azul, que se cruzam compondo a cor roxa ao centro.  Além do título, estão os nomes dos autores, na ordem: Rafael A. F. Zanatta, Pedro do C. B. de Paula, Beatriz Kira (Organizadores), Ana Pellegrini, Artur Pericles Lima Monteiro, Bianca Tavolari, Carlos Affonso Pereira de Souza, Daniel Pinheiro Astone, Dennys Antonialli, Fernando Perini, Gabriela Rodrigues de Andrade, Heider Berlink, Juliet Schor, José Mauro Decoussau Machado, Marcela Mattiuzzo, Marcos Vinício Chein Feres, Natalia Rebello, Pamela Gabrielle Meneguetti, Renan Bernardi Kalil, Ricardo Abramovay, Ronaldo Lemos e Vinicius M. de Carvalho.

O livro foi publicado pela editora Juruá sob a licença CC BY 3.0 BR e já está disponível para venda no site da Juruá, em cópia física e digital. Confira abaixo o prefácio da obra, escrito por Diogo R. Coutinho, professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo:

Prefácio

Em seu Business Cycles, Joseph Schumpeter anotou que o sistema econômico está em constante transição e, por isso, não é algo que se possa descrever como “puro”, nos termos de um modelo analítico lógico e consistente.[1] Dentre os fatores de mudança que produzem flutuações nos ciclos de negócios, há aqueles que operam dentro da esfera econômica e outros que agem fora dela.

Fatores internos são mudanças nos gostos e preferências de consumo, mudanças na quantidade ou qualidade de fatores de produção, bem como mudanças que Schumpeter chamou de inovações. Esses elementos internos são o objeto de análises e considerações tipicamente econômicas, diz ele, que enfatiza, ademais, que a inovação é um fator interno de mudança distinto e peculiar.[2] Na teoria schumpeteriana a inovação industrial – “o fato extraordinário na história econômica capitalista” – adquire centralidade e protagonismo em detrimento do papel dos bancos, da moeda e do crédito, pois é a principal causa das instabilidades cíclicas que acarretam flutuações no investimento, que, por seu turno, explicam ciclos de crescimento econômico.

Os fatores externos à esfera econômica, por sua vez, devem ser tomados como dados da realidade que afetam, de modo exógeno, a vida econômica. Um terremoto, por exemplo, é um fator externo capaz de impactar a economia e os negócios que nela operam, a despeito de não ser, ele próprio, objeto da análise econômica.[3]

Schumpeter é explícito em dizer, no entanto, que certas mudanças no arcabouço institucional são capazes de alterar de forma tal o comportamento das empresas (causando flutuações nos ciclos de negócios) que não se pode dizer que elas sejam fatores inteiramente externos à análise econômica. Essas mudanças institucionais abrangem desde processos amplos e profundos de reconstrução social (como o que ocorreu na Rússia há cem anos), até mudanças mais específicas e circunscritas aos comportamentos e hábitos sociais, diz. Schumpeter é explícito, ainda, ao afirmar que essas mudanças podem ou não estar incorporadas à legislação.[4]

Mudanças no arcabouço institucional, incorporadas ou não pelo direito formal, são, em outras palavras, fatores intermediários ou híbridos, que estão, por assim dizer, ao mesmo tempo dentro e fora do campo da análise econômica. Elas efetivamente reconfiguram as regras do jogo e, com isso, também o significado das relações sistemáticas que formam o “mundo econômico”. Daí a constatação de que o sistema não é inteiramente “puro”.

Com isso, Schumpeter não deixou, a seu modo, de reconhecer o fato de que o arcabouço institucional – que, para ele, abrange não apenas o arcabouço jurídico, mas também as atitudes mentais dos formuladores de políticas públicas – guarda relações íntimas e intrincadas com a economia, com seus ciclos e flutuações nos negócios e atividades empresariais, bem como com as inovações em particular.[5] As instituições jurídicas representam, de um lado, a conservação do status quo, que os empresários inovadores o desafiam a todo tempo em empreitadas de grande risco. Ao mesmo tempo, no entanto, tanto o direito formal quanto as instituições que o embasam “evoluem” em função (entre outras causas) da dinâmica empresarial inovadora, ainda que isso se dê de forma descompassada e quase imperscrutável. O direito é, ao mesmo tempo, constitutivo da economia e por ela criado e transformado.

Da forma como li este livro, entendo que ele, ainda que não de forma explícita, dialoga com essas premissas de forma rica e fértil, desdobrando-as e assim descortinando uma importante agenda de pesquisas. Ao procurar identificar e incorporar análises jurídicas ao estudo das economias do compartilhamento, a obra persegue, em outras palavras, o desafio de explorar o modo como certos elementos simultaneamente externos e internos operam o sistema econômico e por conta dele se modificam e ajustam.

Isso acontece seja porque nas economias do compartilhamento surgem novas figuras e institutos jurídicos para atender a demandas até então desconhecidas, seja porque o direito em suas formas existentes se transmuta para desempenhar novas funções em mercados nos quais a tecnologia propulsiona mudanças vertiginosas, seja ainda porque as economias do compartilhamento demandam uma reflexão intencional e consistente sobre mudanças legislativas, regulatórias e institucionais nos campos da cultura, da confiança, da boa fé e da reputação, das formas de uso e consumo partilhado e no âmbito das redes de interação social que alargam o conceito ortodoxo de “economia de mercado”.

O livro que o leitor tem em mãos leva a refletir, enfim, como o direito – entendido como as normas propriamente ditas, mas também como as instituições, processos, interpretações jurídicas – pode catalisar ou impedir inovações que estão na base das economias do compartilhamento que, no limite, questionam o próprio arquétipo do empreendedor schumpeteriano. Mas vai além dessa intuitiva percepção ao se esforçar para mostrar como isso ocorre hoje.

O resultado é um amálgama de análises, estudos de casos e insights produzidos por uma geração de pesquisadores promissora e talentosa, complementado por reflexões e notas de acadêmicos experimentados. São economistas, sociólogos e juristas que nos apresentam pesquisas, narrativas e depoimentos sobre o que hoje está se passando. Ao fazê-lo, ofertam, ao longo do caminho, achados relevantes que colaboram para o campo das pesquisas sóciojurídicas, em auspicioso florescimento no Brasil.

Uma leitura de grande atualidade e relevância, sem sombra de dúvida, para os juristas e os demais cientistas sociais interessados no “admirável mundo novo” das economias do compartilhamento, das inovações e da tecnologia.

Diogo R. Coutinho

Professor da Faculdade de Direito da USP

[1] Schumpeter, Joseph. Business Cycles – A Theoretical, Historical and Statistical Analysis of the Capitalist Process. Abridged, with an introduction, by Rendigs Fels. New York Toronto London : McGraw-Hill Book Company (1939), pp. 17.

[2] Idem, pp. 82.

[3] Ibidem, pp. 13.

[4] Ibidem, pp. 17.

[5] Schumpeter, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. Taylor & Francis e-Library (2003), pp. 135.

Esperamos que o livro estimule novas pesquisas e auxilie todos aqueles envolvidos e com interesse nesse debate. Em breve, divulgaremos informações sobre o evento de lançamento da obra.

Por Pedro de Paula, Beatriz Kira e Rafael Zanatta (equipe do projeto “Economia do compartilhamento e seus desafios regulatórios”)

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