‘Santinhos’, memes e correntes: um estudo sobre spam político no WhatsApp
Por Francisco Brito Cruz, Heloisa Massaro e Ester Borges
As eleições de 2018 deixaram evidente que a era do horário político eleitoral gratuito na televisão entrou em declínio. Nesse processo, ficou claro que a expansão do uso da internet e das redes sociais transformou dinâmicas de produção, circulação e consumo de informação política, refletidas em uma crescente adoção de estratégias digitais pelas campanhas – da compra de anúncios em redes sociais às notícias falsas e correntes de mensagens
Nesse contexto, o uso do WhatsApp nas campanhas foi protagonista. Parte dessa importância foi propulsionada pela grande repercussão de uma reportagem investigativa divulgada pela Folha de S. Paulo em outubro de 2018. Nela, o jornal apontou que diversas empresas, teriam contratado serviços de disparo em massa de mensagens (ou spam) no WhatsApp em apoio ao então candidato Jair Bolsonaro (PSL), com conteúdos contrários ao Partido dos Trabalhadores (PT), semanas antes do segundo turno do pleito eleitoral.
Os limites da legalidade da ação dessas empresas foi questionado, tanto por configurar uma suposta doação de campanha não declarada quanto pela obscuridade da origem da base de dados de telefones utilizada, cuja comercialização é vedada. Para além dos contornos da legalidade da prática, diversas outras indagações surgiram no debate público, entre elas a relevância desse tipo de tática de campanha para os resultados da eleição, o teor dessas mensagens e quem foram os brasileiros que as receberam durante o período.
Essa e outras reportagens (1, 2, 3, 4) colocaram em questão os efeitos que essa plataforma de mensagens privadas (e criptografadas) teria tido na dinâmica e no resultado do processo eleitoral, seja através de uma mobilização orgânica ou enquanto ferramenta adotada pelas campanhas eleitorais. De um lado, a penetração do aplicativo no país (1, 2, 3) e evidências trazidas por pesquisas e investigações jornalísticas corroboram a hipótese de que o seu uso pode ter sido decisivo na estratégia de alguns candidatos (ou, ainda, de um campo político); de outro, a arquitetura do WhatsApp é refratária à análise de conteúdo em razão da criptografia de ponta a ponta, o que dificulta o escrutínio público sobre o que circulou na plataforma. Somam-se à análise, ainda, as dificuldades de investigação sobre uso de recursos não declarados em campanha. Neste artigo, desenvolvemos uma exploração sobre algumas dessas questões, lançando luz sobre práticas de comunicação política nessa plataforma.
Um estudo exploratório sobre spam no WhatsApp em 2018
Colocado no centro das atenções do debate eleitoral, o spam político no WhatsApp, ou seja, o envio de mensagens em massa e não solicitadas por campanhas, é um fenômeno que merece atenção significativa. De acordo com pesquisa realizada pela Opinion Box, publicada no portal especializado no setor de telecomunicações MobileTime, 26% dos cidadãos brasileiros com mais de 16 anos receberam mensagens sobre política de números desconhecidos durante o período eleitoral no último ano.
A adoção do spam como estratégia de marketing político, todavia, não é um fenômeno novo e exclusivo das eleições de 2018, nem restrito ao WhatsApp. No referendo sobre a proibição de comercialização de armas de fogo no Brasil realizado em 2005, por exemplo, práticas de spam por email já haviam sido identificadas. Um estudo que analisou as estratégias digitais das campanhas pelo “sim” e pelo “não” identificou que ambas se valeram de envios de mensagens em massa para listas de emails. Foram identificados nesses spams, inclusive, a veiculação de discursos conspiratórios e de desinformação, vinculados sobretudo à campanha pela “não” proibição de comercialização.
No caso de 2018, após a reportagem da Folha, autoridades e empresas foram pressionadas a agir, ainda sob o fogo cruzado da polarização política após período eleitoral. Pouco mais de 3 meses depois do fim das eleições, em fevereiro de 2019, o Whatsapp publicou um relatório sobre como vinha combatendo técnicas de spam, compartilhando alguns dados e fluxos com o público. Ademais, em atenção ao fenômeno da comunicação digital durante as eleições, diferentes centros de pesquisa produziram estudos (1, 2, 3) observando grupos públicos de cunho eleitoral (ou seja, grupos acessíveis a partir de um link), diagnosticando a aplicação de técnicas de automação e coordenação em alguns casos e, ainda, significativo fluxo de boatos, de informações descontextualizadas e hiper partidárias.
Em face da repercussão do caso e diante dessas questões, articulamos, no InternetLab, um estudo exploratório sobre práticas de spam no WhatsApp. Considerados os desafios de observar o que ocorre no aplicativo para além dos grupos públicos, optou-se por uma metodologia que levasse em conta o consentimento dos usuários envolvidos e cujo foco fosse descobrir e catalogar táticas e práticas desenvolvidas pelos atores políticos. Assim, disseminamos a partir do Facebook e do Twitter um formulário digital, para que eleitores respondessem se receberam mensagens sobre política de números desconhecidos durante o período eleitoral, e nos encaminhassem as mesmas.
Essa estratégia nos forneceu um retrato de spams que circularam no WhatsApp, e também via SMS, que não poderiam ter sido coletados ou analisados sem o consentimento dos usuários. Ela, todavia, possui limites. Em primeiro lugar, a classificação do que é spam não foi feita de forma objetivamente técnica, mas sim a partir do que os próprios respondentes identificaram como sendo spam: basicamente, mensagens com conteúdo político enviadas a partir de números desconhecidos. Em segundo lugar, as informações fornecidas através do formulário não nos permitem identificar a origem dessas mensagens, se controlada pelas campanhas oficiais ou não. Por fim, dada a dimensão do levantamento e a ausência de representatividade estatística da amostra em relação conjunto do eleitorado, não é possível generalizar conclusões ou considerar que os dados produzidos com as respostas retratam numericamente o que aconteceu com a totalidade do eleitorado. Na verdade, o estudo buscou lançar uma primeira luz sobre uma comunicação política pouco transparente, mas latente, que se operacionaliza por meio de ferramentas de comunicação privada. É uma tentativa de descrever tipos de técnicas e conteúdos de spam que foram avistados na prática eleitoral.
Como resultado, coletamos 78 respostas de todas as regiões do país, constituindo uma base de dados com um perfil relativamente diversificado. Dentre os respondentes, uma grande maioria se declarou residente do sudeste (cerca de 65%), porém recebemos respostas de mais de 30 municípios espalhados pelas cinco regiões do país. De todos eles, a maioria recebeu mensagens de números de seu próprio estado ou município.
O propósito do estudo foi coletar supostos spams enviados por WhatsApp, todavia, 11 respondentes nos enviaram spams recebidos via SMS – um meio para spam anterior ao Whatsapp. Como um dos escopos deste trabalho também foi entender aquilo que foi recebido em dispositivos móveis, os spams de SMS foram incluídos no banco de dados para análise.
O levantamento nos surpreendeu pela diversidade do material encontrado e dos discursos comunicados. A vinculação dessas mensagens também chamou atenção, elas possuem uma grande gama de partidos associados, entre eles PDT, Solidariedade, PV, NOVO, Podemos, PSDB, PRTB, DEM, PSD, PT e PSL. Além disso, os candidatos que aparecem em parte dos materiais recebidos não concorriam apenas a cargos do executivo, mas também ao legislativo estadual e federal.
Dessa forma, se, por um lado, não é possível traçar um retrato definitivo, por outro, um olhar sobre esses materiais oferece uma perspectiva inédita, que abre um novo leque de questões para análise e trilhas de pesquisa.
Para além do ‘bolsonarismo’: quais candidatas/os apareceram no nosso estudo exploratório?
Com a divulgação da reportagem investigativa da Folha de S. Paulo, uma das questões suscitadas diz respeito a quem também poderia ter adotado essa estratégia. A comunicação através do WhatsApp teria servido apenas ao presidenciável do PSL e candidatos a ele vinculados ou teria sido uma estratégia disseminada entre diversas campanhas? Em 2017, a BBC Brasil já havia reportado o papel ocupado pelo WhatsApp na construção de uma rede de militância pró-bolsonaro. Nesse registro, a plataforma de mensagens instantâneas é tida como uma ferramenta relevante na ascensão dessa nova direita capitaneada pelo bolsonarismo, sobretudo na articulação de uma estrutura de propaganda em rede, composta por um “um misto coordenado de esforço contratado com outro voluntário e espontâneo”.
Uma das características que chamou atenção no nosso levantamento foi a diversidade de candidatos e partidos associados aos materiais coletados. Como mencionado anteriormente, nossa amostra conta com mensagens vinculadas a políticos que concorreram em diversas corridas eleitorais em 2018: presidência, governo do estado, Senado, Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas. Foram citados um total de 31 candidatos, vinculados a 11 diferentes partidos. Diferentemente da hipótese inicial, grande parte deles não era “novato” na política, mas sim candidatos já experientes eleitoralmente, que concorriam em sua segunda ou terceira eleição, a maioria deles já tendo exercido cargos públicos eletivos em seus municípios e estados. Dentre estes, sete foram, de fato, eleitos após o pleito. Romeu Zema, candidato ao governo de Minas Gerais, foi o único “novato” que apareceu no nosso levantamento e foi eleito.
Outro aspecto encontrado foram as diferentes formas e discursos adotados por candidatos concorrendo a cargos distintos. A partir de nosso banco de dados e da análise dos conteúdos, com suas diferenças e convergências, percebe-se, de modo geral, uma divisão em dois grandes grupos de mensagens consideradas spam: peças publicitárias simples com intuito de tornar o candidato conhecido, e mensagens elaboradas com tom persuasivo quanto a propostas de programas de governo e posições ideológicas. Esse primeiro grupo de mensagens, nas quais o candidato era apresentado ao eleitor, apareceu vinculado principalmente aos candidatos concorrendo a cargos no legislativo, principalmente aqueles que já possuíam experiência como vereadores municipais, como forma de capilarizar suas candidaturas nos estados. No outro grupo, os conteúdos eram vinculados à polarização política subjacente à disputa eleitoral, expressa sobretudo no segundo turno da corrida presidencial, compondo os discursos e a disputa que se estabeleceram naquele momento.
Essa diferença pode refletir uma necessidade maior das candidaturas ao Legislativo de se fazerem conhecidas pelo eleitorado, apresentando seu nome, número e vinculação política. Já nos cargos para o Executivo, por outro lado, a imagem desses políticos e seus números na urna, em regra, já estariam mais consolidados para o eleitorado, predominando, assim, discursos relacionados a seus projetos e posições ideológicas.
A revelação dessas práticas e a existência de conteúdos vinculados a candidatos de vários partidos que concorreram em diversas corridas eleitorais chama atenção em nosso levantamento exatamente pela sua diversidade. Para além da articulação de uma rede de comunicação da nova direita e dos supostos disparos massivos a favor do presidenciável do PSL, os spams coletados por meio do nosso questionário retratam um uso mais disseminado do WhatsApp enquanto ferramenta de comunicação política. Ainda que uma análise das mensagens recebidas não seja capaz de esclarecer se elas foram de fato fruto de estratégias adotadas pelas próprias campanhas, essa diversidade identificada aponta para um uso heterogêneo dessa plataforma.
O rastro do dinheiro: quem declarou despesas com envio de mensagens em massa?
A diversidade de estilos, formatos e conteúdos das mensagens recebidas abrange desde comunicações mais formais, mecânicas e diretas, que se aproximam mais de uma estratégia de comunicação massiva por parte da campanha, até memes, imagens e correntes que remetem a uma comunicação orgânica entre eleitores. Essa heterogeneidade traz indícios de que o envio de mensagens com conteúdo eleitoral pode ter sido tanto uma estratégia institucional das próprias campanhas, quanto uma prática orgânica e descentralizada de apoiadores, que articuladas comporiam uma estruturas de propaganda em rede.
Se operacionalizada pela própria campanha, uma das fontes de informação sobre a adoção dessa prática são os dados da justiça eleitoral sobre os gastos de campanha das/os candidatas/os. Inclusive, conforme apontado em relatório anterior do InternetLab, estiveram presentes na prestação de contas das/os deputadas/os eleitas/os despesas com envio de emails e mensagens no curso da campanha eleitoral. Pensando nisso, cruzamos os dados do nosso levantamento com aqueles disponibilizados pela Justiça Eleitoral com o objetivo de identificar quais dentre os candidatos encontrados nos materiais coletados declararam ou não gastos em propagandas enviadas massivamente, seja via SMS ou Whatsapp.
Ao consultarmos as prestações de contas de campanha na plataforma DivulgaCandContas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) identificamos que dentre os 31 nomes de candidatos que aparecem nas imagens encaminhadas, apenas seis declararam gastos com o envio de mensagens de forma explícita. Destes, 5 não mencionaram o WhatsApp: 4 declararam gastos com envio de SMS, e outro declarou de forma genérica, gastos com envio de “mensagem eletrônica” Apenas um candidato declarou expressamente a utilização de envio de mensagem por meio da plataforma WhatsApp. Na planilha abaixo é possível visualizar os dados encontrados:
Declaração de despesas com envio de mensagens pelas/os candidatas/os encontrados nos materiais coletados
Candidato | Tipo de mensagem | Cargo | Declarou gastos com envio massivo de mensagens? De que tipo? | Empresa | Qual o valor declarado? (R$) |
Almir Cicote | SMS | Deputado Estadual (SP) | Não | ||
Anastasia | Governador (MG) | Sim, mensagem eletrônica pelos meios oficiais | MK365 – Comunicação e marketing Eireli | 25 mil | |
Pedro Leitão | SMS | Deputado Federal (MG) | Não | ||
Angelo Coronel | Senador (BA) | Não | |||
Jaques Wagner | Senador (BA) | Não | |||
Arnaldo Faria de Sá | SMS | Deputado Federal (SP) | Sim, SMS e WhatsApp | NXS Tecnologia e Serviços LTDA | 69 mil |
Jair Bolsonaro | SMS e WhatsApp | Presidente | Não | ||
Carlo Caiado | Deputado Estadual (RJ) | Não | |||
Claudio Gaspar | Deputado Federal (SP) | Não | |||
Da Luz | Deputado Federal (BA) | Não | |||
Dr Gondim | Deputado Estadual (SP) | Não | |||
Fernando Haddad | Presidente | Não | |||
Jaime Bagattoli | SMS | Senador (RO) | Não | ||
Joaquim Miranda | Deputado Estadual (MG) | Não | |||
Leonído Bouças | Deputado Estadual (MG) | Não | |||
Fabiano Tolentino | Deputado Federal (MG) | Não | |||
Marcello Richa | Deputado Estadual (PR) | Não | |||
Marlon do Uber | SMS | Deputado Federal (SP) | Não | ||
Henrique Meirelles | Presidente | Sim, SMS | Deep Marketing LTDA | 2 milhões | |
Odelmo Leão | Não concorreu | – | – | ||
Osvaldo Mafra | Deputado Federal (SC) | Sim, SMS | IKNOW 360 Comunicação Digital LTDA | 6 mil | |
Levi Cavalini | Deputado Federal (SP) | Não | |||
Ezequiel Teixeira | Deputado Federal (RJ) | Não | |||
Pedro Fernandes | Governador (RJ) | Não | |||
Professor Calasans Camargo | SMS | Deputado Federal (SP) | Sim, SMS | SMS Market – Soluções Inteligentes LTDA | 1,2 mil |
Professora Nilse | Deputada Estadual (PA) | Não | |||
Ricardo Mellão | Deputado Estadual (SP) | Não | |||
Romeu Zema | SMS | Governador (MG) | Sim, SMS | CROC Services Soluções de Informática LTDA | 200 mil |
Ronaldo Lessa | Deputado Federal (AL) | Não | |||
Caio Narcio | Deputado Federal (MG) | Não | |||
Lula | Presidente | Não |
Vale ressaltar, contudo, que a identificação desses gastos depende da forma como eles foram declarados por cada candidatura, o que nem sempre é claro e padronizado. Nas prestações de contas disponíveis na plataforma DivulgaCandContas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os gastos declarados são classificados pelas próprias campanhas em rubricas padrão que indicam o tipo de despesa, como “impulsionamento de conteúdos” e “criação e inclusão de páginas na internet”, por exemplo. Além dessa classificação, a campanha pode detalhar essa despesa, incluindo uma descrição da mesma.
Ao analisar os gastos das/os deputadas/os federais eleitas/os, nossos estudos anteriores já apontaram problemas nesse sistema de declaração. No caso, foi identificado uma possível confusão na classificação dos gastos sob a rubrica “impulsionamento de conteúdo”, indicando uma falta de clareza das campanhas e candidatas/os com relação ao termo e à categorização correta de gastos. Inclusive, despesas cuja descrição indicava a contratação de serviços de marketing digital direto por meio do envio de mensagens foram classificadas como “impulsionamento de conteúdo”, ainda que a prática não pareça se encaixar exatamente na definição do termo pela legislação eleitoral.
Essa falta de clareza na forma de declarar essas despesas, sobretudo àquelas referentes a estratégias de marketing digital, pode ser um obstáculo para a transparência desses gastos. A classificação dessas despesas e sua descrição exata e detalhada depende de como cada campanha escolhe declará-las. Assim, no caso do envio de mensagens em massa via Whatsapp aqui sob análise, é possível que campanhas tenham adotado essa estratégia e declarado esses gastos sem que eles tenham sido discriminados detalhadamente como tal, dificultando a sua identificação. Além disso, a incerteza quanto à admissibilidade dessa prática pela legislação eleitoral também pode ser um fator relevante na decisão das campanhas de declarar os gastos como tal.
Por outro lado, também é possível que candidatos que aparecem nas mensagens recebidas não tenham adotado essa prática em sua campanha e sequer tiveram ciência disso, sendo o envio de mensagens uma atividade de apoiadores. Nesta hipótese, o envio de mensagem pode ser melhor entendido como parte de uma estrutura de propaganda em rede, que transcende o controle da máquina oficial da campanha. Sob essa chave de análise, a articulação de diferentes atores, em várias plataformas e espaços digitais, atuando por motivações diversas, comporiam uma rede descentralizada e capilarizada de comunicação e propaganda política, na qual a máquina oficial de campanha seria apenas um dos nós. Nessa dinâmica de rede, a produção e circulação de conteúdo não depende nem é controlada por um centro irradiador único. Assim, o envio de mensagens no WhatsApp pode ter sido uma prática de diversos outros atores que são apenas outros nós nessa rede e que atuam não necessariamente sob controle ou associados à campanha oficial, mas apenas em sinergia com esta.
Foram só boatos e críticas? As peculiaridades do material levantado e a diversidade de conteúdos comunicados
O conteúdo e os discursos veiculados por meio dessas estratégias de disparo em massa de mensagens e sua intervenção na opinião pública foram outras das questões levantadas em face a adoção dessa prática pelas campanhas. Estaria o WhatsApp possibilitando a circulação de conteúdo de desinformação (incluindo notícias falsas) com potencial de influir no resultado das eleições? O caráter privado dessa ferramenta de comunicação, todavia, impõe restrições para a análise e compreensão do que efetivamente circulou durante as eleições via WhatsApp, da origem dessa comunicação (se orgânica ou oficial da campanha), e do impacto que ela possa ter tido.
Ainda que a dimensão do levantamento que propusemos esteja longe de responder definitivamente a essas questões, ele possibilitou um olhar sobre algumas das mensagens recebidas pelos eleitores e por eles identificadas como spam, seja via SMS ou WhatsApp. Assim pudemos explorar, ainda que limitadamente, alguns formatos, conteúdos e discursos dessas mensagens encaminhadas.
O formato dos conteúdos coletados foi bastante variado, foram recebidos pelos eleitores mensagens de texto, áudios, correntes, imagens, links soltos, SMS e vídeos. Contudo, para além do envio de diversos conteúdos, nosso levantamento identificou também o que pode configurar uma prática de inclusão massiva de contatos em grupos de WhatsApp sem o consentimento do usuário.
De acordo com as respostas recebidas através do formulário, essas pessoas teriam sido inseridas por números desconhecidos (e diferentes entre si) em grupos semelhantes que se apresentavam “em defesa da democracia”.
A adoção dessa estratégia, seja pela própria campanha ou por apoiadores, chama atenção porque, diferentemente do envio de mensagens no qual a comunicação é direta com o eleitor, ela também inclui um componente de mobilização. Para além de permitir o envio de conteúdo sem disparos massivos, essa prática possibilita que a campanha ou os próprios apoiadores busquem construir uma rede de debate e mobilização orgânica entre os eleitores presentes no grupo.
Ao mesmo tempo, a autoria dessa tática deve ser vista com ressalvas. Segundo os dados levantados, esses convites para grupos “em defesa da democracia” foram realizados após as denúncias de disparos massivos feitos via WhatsApp pela campanha do PSL, o que deixa em aberto a possibilidade da medida ter sido realizada com o objetivo de simular o uso de estratégias similares às noticiadas em campanhas adversárias em razão da repercussão negativa do caso. Nesse sentido, é relevante considerar que a justificativa declarada para a inserção dos usuários nos grupos segundo a própria descrição destes se relacionava ao fato de os números de telefone estarem vinculados a filiados de partidos no TSE. Contudo, as listas de filiados disponibilizadas pelo TSE não possuem entre os dados fornecidos em transparência ativa os números de telefones destes cidadãos, apenas sua zona eleitoral, número de registro, estado de residência e data de vinculação ao partido. Assim, aferir se essa tática foi real ou estratégia de “sabotagem” é um exercício que requer maiores evidências.
Se, por um lado, essa diversidade de formatos das mensagens identificadas como spam não é tão inesperada, por outro, uma das características que mais chamou atenção no nosso levantamento foi a diversidade de conteúdo e discursos, vinculados a diversos partidos, candidatos e ideologias. Foram encontrados “memes”, manchetes jornalísticas e grupos destinados a endossar discursos de construção e desconstrução da imagem pública de políticos nominalmente ou de seus projetos de governo apresentados em campanha.
Ainda, uma parte considerável do material coletado consiste em comunicação típica de campanhas tradicionais, com a apresentação do candidato, seu número nas urnas e seu slogan. Em diversos dos casos o estilo da comunicação, e até mesmo sua estética visual, remete aos tradicionais “santinhos”. Esse tipo de conteúdo foi encontrado vinculado majoritariamente à corrida eleitoral por cargos do legislativo. Em muitas dessas vezes, ainda, a/o candidata/o se vinculava às figuras dos candidatos à presidência como forma de promoção, sobretudo à imagem de Jair Bolsonaro.
A corrida presidencial, inclusive, foi elemento fortemente presente em parte do material recebido, refletindo a forte polarização política vivenciada na esfera pública brasileira durante o período eleitoral, especialmente no segundo turno. Polarização esta presente, pelo menos, nos últimos três pleitos eleitorais, esgarçada a partir do impeachment de Dilma Rousseff. Essas disputas de narrativa e as divergências na opinião e nas atitudes políticas dos brasileiros teriam se refletido nas dinâmicas de comunicação e interação nas mídias sociais. Segundo estudo que analisou a difusão de notícias hiper-partidárias, os brasileiros se dividiram em dois polos. De um lado, páginas de partidos e políticos de esquerda, de ONGs ativistas pelos direitos humanos, e dos movimentos negro, feminista e LGBT. De outro, páginas de partidos ou candidatos de direita, e ligadas ao liberalismo econômico e ao conservadorismo. A análise do padrão de interação dos usuários com essas páginas revelou a formação de dois polos que não possuem pontos de contato entre si, fomentando a radicalização das narrativas ligadas ao “petismo” e ao “antipetismo”
Para além da vinculação de candidaturas do legislativo à imagem dos presidenciáveis, diversos outros discursos envolvendo esse elemento de polarização foram veiculados. Nosso levantamento coletou tanto mensagens de construção positiva da imagem dos candidatos e de seus projetos, quanto propaganda eleitoral negativa. Em sua maioria, essas mensagens comunicaram conteúdo com teor de ataque a um dos candidatos e/ou seus respectivos partidos, com reflexos inclusive em outras corridas. Algumas vezes, esse discurso não necessariamente era posto como forma de persuasão ao voto no candidato concorrente, mas, apenas com o intuito de uma “contra-campanha”.
O tom desses discursos vinculados à campanha presidencial também foi bastante variado, incluindo desde a apresentação mais direta de algumas propostas, remetendo a um tom oficial de campanha, até mensagens com tons mais informais e/ou apelativos de construção de apoio ou de distorção da imagem e das propostas do concorrente, aludindo quase que a uma disputa entre eleitores.
Alguns dos materiais questionavam também os resultados do primeiro turno da disputa, utilizando-se de informações inverídicas. No exemplo mais icônico, a mensagem alegava que não existem votos nulos em eleições realizadas em urnas eletrônicas, de forma que o TSE devia explicações à população brasileira quanto ao número de votos anulados na corrida presidencial. A corrente, apesar de utilizar um tom persuasivo, propagava desinformação, comunicando informação falaciosa a respeito da nulidade do voto, que é uma possibilidade garantida ao eleitor inclusive na urna eletrônica.
Existiram também mensagens pulverizadas deslegitimando a repercussão midiática da disputa dual entre PT e PSL, associando maior importância às eleições do legislativo. O caso abaixo registra uma dessas mensagens, na qual é explorado o descontentamento da opinião pública com os atores políticos dos cargos executivos:
É importante salientar que muitos desses conteúdos recebidos não estão explicitamente vinculados a um partido ou candidato. Com frequência, eles consistem em opiniões sem assinatura clara ou teor de campanha com objetivo de conquistar votos, apesar de se posicionarem diretamente quanto aos principais candidatos à presidência da república e ao governo do estado. É o caso da maioria das imagens, “memes” e vídeos, incluindo a mensagem sobre votos nulos apresentada acima.
Dentre esses conteúdos sem assinatura ou vinculação político-partidária explícita, há uma presença significativa de discursos de ataque a candidaturas e partidos. Para além da polarização que marcou a corrida presidencial, esses discursos de contra-campanha também apareceram vinculados a outras disputas eleitorais, como foi o caso das eleições para o governo do estado de São Paulo. Nosso levantamento coletou repetidos vídeos com mensagem contrária ao candidato Paulo Skaf, possível reflexo da concentração de materiais recebidos no estado de São Paulo, porém sem apresentação de qualquer outro candidato. Apesar de não termos acesso ao conteúdo integral do vídeo, estas mensagens chamam atenção por conterem exatamente o mesmo conteúdo e terem sido enviados em dias próximos, 12 e 13 de setembro de 2018, a partir de números de telefones com prefixo dos Estados Unidos como remetente.
A presença de características como essas no nosso levantamento, inclusive o prefixo telefônico internacional do remetente, trazem elementos que podem indicar que parte dessas mensagens tenham sido de fato enviadas como resultado de disparos massivos. Não obstante, a diversidade de conteúdos e formatos descrita chama a atenção exatamente por não apenas corroborar com essa hipótese, mas vislumbrar múltiplas possibilidades de comunicação política via WhatsApp que podem ter sido utilizadas no período eleitoral. O uso da plataforma para mobilização e comunicação de eleitores pode ter sido adotado não apenas pelas campanhas como estratégia oficial, mas também por apoiadores. Além disso, essas circulação de mensagens pode ainda ser fruto de uma mobilização orgânica de eleitores. As origens e forma de circulação desses conteúdos podem ter sido múltiplas, corroborando a narrativa de uma estrutura de comunicação política em formato de rede, o que parece estar refletido no nosso levantamento.
Os limites da legalidade: o envio de mensagens em massa, a legislação eleitoral e a regulação das plataformas
No universo dos vários usos e formas de comunicação política via WhatsApp, que se encontram refletidos em nosso banco de dados, a estratégia de envio de mensagens em massa requer atenção no que diz respeito à sua conformidade jurídica. Seus contornos de legitimidade podem ser analisados a partir de dois quadros normativos, não excludentes mas complementares, a legislação nacional – sobretudo a eleitoral – e as políticas e termos de uso da plataforma.
No âmbito do direito estatal, os limites da legalidade do envio massivo de mensagens via SMS ou WhatsApp são imprecisos e ensejam questões relacionadas à conformidade da prática em face da regulamentação da propaganda eleitoral na internet e à origem desses bancos de dados com os números de telefone utilizados para o envio.
O spam político é previsto pela lei como forma de propaganda eleitoral?
A minirreforma eleitoral de 2017 alterou o art. 57-C da Lei das Eleições para incluir o impulsionamento de conteúdo como única forma permitida de propaganda eleitoral paga na internet. Ainda que a delimitação desse termo não seja clara, possibilitando debates sobre o que seria considerado “impulsionamento de conteúdo”, o envio massivo de mensagens por meio do WhatsApp, ou via SMS, não parece se encaixar nessa hipótese.
Segundo o art. 57-C §3º da Lei das Eleições (Lei 9.504/97), o “impulsionamento” deve ser um produto de marketing digital oferecido pelo próprio provedor de aplicações de internet, e não por um terceiro. Essa definição já excluiria a hipótese de disparos em massa via WhatsApp, uma vez que a plataforma não oferece ela própria esse serviço, e via SMS, que não é serviço oferecido por provedor de aplicação de internet, mas sim por provedores de conexão.
Com efeito, o spam não é um produto oferecido pelas próprias ferramentas e plataformas de comunicação, mas um serviço exercido por terceiros que se aproveita de uma ferramenta de comunicação preexistente. No caso do WhatsApp, o emprego dessas ferramentas não oferecidas pela plataforma para envio massivo de mensagens pode ser visto, inclusive, como uma violação ao art. 57-B, §3º da Lei das Eleições. O dispositivo proíbe o uso de ferramentas digitais não disponibilizadas pelo próprio provedor de aplicações de internet para alterar o teor ou a repercussão da propaganda eleitoral.
Essa prática de spam, na realidade, encontra conexão com o art. 57-B da Lei das Eleições. Enquanto o art. 57-C estabelece que o impulsionamento de conteúdo é a única forma permitida de propaganda eleitoral paga na internet, o art. 57-B traz uma lista de formas através das quais a propaganda eleitoral na internet pode ser realizada. O inciso III prevê que a propaganda eleitoral pode ser realizada “por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação”. Já o inciso IV autoriza a propaganda eleitoral realizada por meio de sítios de mensagens instantâneas e aplicações de internet desde que o conteúdo tenha sido criado pelos “candidatos, partidos ou coligações”, ou por qualquer pessoa física desde que ela não contrate impulsionamento de conteúdo.
Proteção de dados e os limites do consentimento do eleitor: como a lei aborda os cadastros com informações pessoais?
A legalidade dessa estratégia depende ainda da consideração de outros fatores adicionais. Uma análise cuidadosa também precisa ser realizada acerca da origem dos cadastros de telefone ou endereços eletrônicos utilizados para disparar spam e as formas pelas quais esses dados de eleitores de todo o país foram obtidos. No âmbito da legislação eleitoral, são vedadas práticas de venda, doação e cessão de bancos de dados de cadastros eletrônicos para fins eleitorais. O art. 57-E §1º da Lei das Eleições proíbe de forma abrangente a venda de cadastro de endereços eletrônicos. Por outro lado, o art. 57-E caput veda que as pessoas jurídicas listadas no art. 24 desta mesma lei utilizem, doem ou cedam “cadastros eletrônicos de seus clientes, em favor de candidatos, partido e coligações”. Desde o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que proibiu a doação de empresas para campanhas eleitorais, as empresas do setor privado são consideradas no rol do art. 24, ainda que não estejam expressamente listadas. Não obstante, a aplicabilidade da vedação do caput do art. 57-E a elas ainda é uma zona cinzenta.
Outra questão controversa, diz respeito aos bancos de dados de endereços eletrônicos de pessoas físicas. O envio consensual de mensagens eletrônicas por pessoa natural, seja nas conversas privadas ou nos grupos de WhatsApp, não sofre restrições da legislação eleitoral de acordo com o art. 28 §2º da Resolução do TSE nº 23.551/2018. A cessão e doação desses bancos de dados, todavia, é outra questão. Por um lado, eles podem ser vistos como recursos, a serem tratados como doações de campanha. Por outro, em se tratando de dados pessoais, seu tratamento deve ser analisado à luz dos princípios e regulamentações sobre o tema, respeitando as previsões da Constituição Federal, do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Em termos gerais, em respeito à autonomia do titular dos dados, os candidatos só poderiam realizar o tipo de campanha observado a partir de bancos de registros próprios ou de outras pessoas físicas, coletados e utilizados nos limites do consentimento de seus titulares. Ainda, o envio de mensagens eletrônicas pelas campanhas também deveria estar de acordo com o consentimento do eleitor. Por força do art. 57-G da Lei das Eleições, os candidatos, partidos e coligações estão submetidos a um dever de descadastramento, possibilitando que o destinatário escolha não receber mais as mensagens. A surpresa registrada pelos eleitores em parte do nosso levantamento, contudo, demonstra que não foram apenas em casos de consentimento que o uso de seus dados e o envio de mensagens ocorreu.
Como o WhatsApp trata o envio massivo de mensagens?
Para além do cenário incerto no que diz respeito à legislação eleitoral, o envio massivo de mensagens e algumas das práticas a ele relacionadas podem encontrar óbices na própria política das plataformas, como no caso da utilização de ferramentas que impedem a identificação da origem do número que envia mensagens no WhatsApp. Essa tática, inclusive, foi identificada nas respostas submetidas ao formulário disponibilizado pelo InternetLab, nas quais os números não possuíam identificação do estado de origem através dos prefixos telefônicos, ou possuíam códigos internacionais. De acordo com reportagem da BBC, o uso de números com prefixo dos Estados Unidos é uma das estratégias para impedir a identificação da origem do número adotadas por empresas que oferecem esses serviços de disparo de mensagens em massa.
No caso do WhatsApp, tanto a prática do marketing direto, quanto a mudança de números e o prejuízo em sua identificação ferem a política de uso da plataforma. A utilização não pessoal dos serviços do aplicativo, sem autorização do mesmo, e o envio de mensagens em massa, mensagens automáticas, ligações automáticas e afins são explicitamente consideradas “usos ilícitos” da plataforma em seus termos de serviço.
Ainda, em fevereiro deste ano, a empresa lançou um relatório sobre como tem combatido comportamentos abusivos na plataforma, como mensagens em massa e ação automatizada, evidenciando que essa é uma prática a ser combatida. Além de ferir as políticas do WhatsApp, o envio de mensagens em massa seria contrário à própria arquitetura da plataforma. Assim, para distribuir conteúdo em massa, é necessário que essa arquitetura seja contornada, o que resulta em comportamentos que a plataforma busca identificar como sinais de abuso. Em razão da criptografia de ponta a ponta, as medidas adotadas atentam-se a esses comportamentos das contas e às denúncias dos usuários. Sistemas de machine learning foram construídos para detectar comportamentos abusivos no momento do cadastro, a partir de padrões de envio de mensagem e comportamento na plataforma, e pelo acúmulo de denúncias de usuários. De acordo com a plataforma, cerca de dois milhões de contas foram banidas mensalmente por comportamento abusivo entre os meses de novembro/2018 e fevereiro/2019.
Todas essas nuances na consideração da conformidade de práticas de envio de mensagens em massa via WhatsApp em relação à legislação eleitoral e às próprias políticas da plataforma apontam para um cenário de incerteza quanto a legalidade da adoção desse tipo de estratégia pelas/os candidatas/os. Essa insegurança pode ser fator relevante na decisão das campanhas de oficializar e publicizar essa prática, inclusive por meio da declaração expressa de gastos sob essa descrição. Ao declarar expressamente a utilização desse mecanismo em sua prestação de contas, estaria a/o candidata/o violando ou assumindo violar a legislação eleitoral e a política das plataformas? Da mesma forma, o caráter privado dessa comunicação não permite que seu conteúdo esteja sob escrutínio público direto. Assim, a análise da legalidade das mensagens veiculadas, como no caso da propaganda eleitoral negativa e das notícias falsas, por exemplo, e a atuação da Justiça Eleitoral só se tornam possíveis a partir do momento que um dos interlocutores envolvidos nessa comunicação privada revela o seu conteúdo ou o denuncia.
Ainda há muito a se explorar: eleições, mídias sociais, opinião pública e dados pessoais
Buscando jogar luz sobre práticas de comunicação política via WhatsApp, esta pesquisa exploratória se insere em um esforço coletivo de pesquisa maior que vem sendo desenvolvido no InternetLab, no qual se inserem projetos como Você na Mira, Direito Eleitoral na Era Digital e #OutrasVozes. Olhando para as novas dinâmicas de comunicação política que se desenvolvem e se transformam a partir da emergência da internet e das novas mídias sociais, essas pesquisas vêm buscando traçar diagnósticos sobre as campanhas digitais nas eleições de 2018, mapear questões regulatórias e imaginar possíveis recomendações e soluções para proteger direitos fundamentais e princípios democráticos.
Na esteira dos debates travados sobre a influência das redes sociais na dinâmica das eleições de 2018, uma tentativa de síntese desses diagnósticos e dados foi através da mobilização do conceito de estrutura de propaganda em rede. A hipótese é que ele se aplique não apenas à campanha de Jair Bolsonaro, mas ajude a explicar as dinâmicas de campanhas políticas e eleitorais que vem se desenvolvendo a partir da internet e das novas mídias sociais.
Ao olhar para o WhatsApp e algumas das práticas de comunicação política que aconteceram na plataforma, este estudo exploratório traz novos elementos para esse diagnóstico. O exame da diversidade de conteúdos, formatos, discursos e vinculações político-partidárias das mensagens recebidas alimentam a hipótese de campanhas políticas organizadas em uma rede e trazem contribuições para a análise e compreensão dessa rede, seus nós e relações.
A interpretação dos resultados deste estudo em conjunto com as descrições sobre o ativismo em rede presente na campanha digital, de um lado, e as revelações sobre disparos em massa não declarados à Justiça Eleitoral, de outro, pode corroborar dois cenários ideais. O primeiro é que esses conteúdos circulam em uma dinâmica descentralizada de comunicação política em rede, sem controle pela estrutura central da campanha. O segundo é que eles fazem parte de uma tática de veiculação coordenada de discursos apócrifos. A diferenciação entre esses dois cenários, todavia, requer que sejam observadas outras evidências não fornecidas por esta pesquisa, como a identidade de quem enviou e a sua vinculação com a campanha, mesmo que sub-reptícia, em termos concretos. Assim, realizar essa diferenciação é uma tarefa apenas aplicável de caso em caso.
Não obstante, deve-se ter cautela na mobilização isolada desses cenários para traçar diagnósticos de campanhas e resultados eleitorais. Por um lado, não se deve cair em uma idealização sobre a operação de estruturas e coordenações de campanha que agem fora do escrutínio público, inclusive a partir da injeção de recursos financeiros não declarados. Por outro, deve ser evitada uma explicação simplista e conspiratória de uma dinâmica de campanha descentralizada que contempla a presença de um intenso e emergente ativismo digital presente nos dois polos da política brasileira.
Em termos gerais, uma descrição do funcionamento das campanhas digitais nesse contexto deve considerar ambas as situações (e todo o gradiente de possibilidades entre elas) como possíveis, admitindo que entre componentes da rede da campanha podem haver dinâmicas diferentes de controle, coordenação, aliança tática ou mesmo de apenas sinergia.
Para melhor compreender as dinâmicas de funcionamento dessas campanhas digitais, contudo, mais esforços de pesquisa são necessários. Se o quadro conceitual mobilizado é o de uma estrutura de propaganda em rede, entender essa rede, sua formação e seu funcionamento exige esforços e investigações em várias frentes. Seja para entender o que circula nessa rede, como circula e qual o impacto na opinião pública, seja para investigar quais são os nós e atores dessa rede, como eles se interrelacionam e mobilizam as diversas ferramentas e plataformas de comunicação disponíveis. São muitas e variadas as questões que se colocam. Este estudo joga luz sobre parte desses questionamentos, e abre perspectivas de análise para que investigações mais aprofundadas se desenvolvam.
Mesmo que limitada em seu alcance a nível nacional, as análises e diagnósticos possibilitados por esta pesquisa preliminar conduzem questões de ordem regulatória que também devem ser exploradas. Três delas merecem destaque:
- a imprecisão no sistema de declaração de despesas da justiça eleitoral no que tange às ferramentas de marketing político digital;
- a ausência de um canal direto para denúncias e fiscalização de spam eleitoral; e
- a necessidade de incorporação de regras e parâmetros de proteção de dados na legislação eleitoral
A apuração das candidaturas que declararam gastos com envio de mensagens via WhatsApp ou SMS reforçou a existência de uma certa confusão e falta de clareza no sistema de declaração dessas despesas relacionadas às ferramentas de marketing digital. Essa falha já havia sido evidenciada pela análise dos gastos com “impulsionamento de conteúdo” declarados pelas campanhas das/os deputadas/os federais. Com o desenvolvimento de novas dinâmicas de comunicação política que se apropriam dessas ferramentas de marketing digital e se tornam cada vez mais expressivas, todavia, se faz necessário que a declaração dos valores direcionados para essas ferramentas seja mais precisa.
A existência de rubricas mais claras e a obrigação expressa de que esses serviços sejam declarados como tais e descritos de forma precisa e detalhada é essencial para que haja transparência nas campanhas digitais. A implementação de um sistema de declaração que contenha informações sobre as ferramentas e estratégias de marketing digital adotadas pelas campanhas e o valor direcionado a elas fornece dados mais claros para pesquisas e para o desenvolvimento de políticas regulatórias, possibilita um escrutínio público sobre essas práticas e favorece uma fiscalização qualificada da justiça eleitoral sobre as campanhas digitais.
No caso do envio de mensagens em massa por ferramentas de comunicação digital como WhatsApp, não só é necessário que as despesas com essa prática sejam declaradas de forma expressa e detalhada, mas também é importante que haja um canal direto para que eleitores possam denunciar usos ilegais dessa ferramenta. Nesses casos, como se tratam de ferramentas de comunicação privada, a informação fornecida pelos interlocutores dessa comunicação é único meio para que práticas ilegais, como o envio não consensual de mensagens e veiculação de conteúdos ilegítimos, cheguem ao conhecimento da justiça eleitoral. Assim, para aprimorar a fiscalização sobre essas ferramentas, se faz necessário a implementação, pela justiça eleitoral, de um canal direto de denúncias de spam.
Por fim, um terceiro ponto regulatório deriva das questões levantadas com relação à origem dos bancos de dados para realização de marketing direto e ao consentimento prévio dos eleitores quanto a disponibilidade de seus números telefônicos para o recebimento de material digital de campanhas. Essas questões apontam para uma necessidade de regulamentação específica da coleta, tratamento, uso e compartilhamento de dados pessoais pelas campanhas eleitorais. Ainda que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) aprovada em 2018 tenha estabelecido um marco regulatório para a proteção de dados pessoais no país, as peculiaridades do cenário eleitoral requerem que regras específicas sejam adotadas nesse contexto. Assim, se faz necessário a formulação de uma regulamentação eleitoral específica de proteção de dados que reflita as regras, princípios e parâmetros consolidados no âmbito da LGPD, contemplando estratégias de escrutínio transparente da origem dos dados manipulados pelos partidos políticos e candidatos, e segurança da privacidade dos dados de identificação de cidadãos junto ao TSE.