Como se discute racismo na Internet? Um experimento com dados no mês da Consciência Negra
Mesmo no período em torno do Dia da Consciência Negra, casos individuais de racismo têm mais impacto nas redes que discussões sobre racismo estrutural. Foi o que indicou um experimento realizado pela nossa coordenadora de pesquisa Natália Neris e nosso pesquisador Lucas Lago sobre os níveis de engajamento no Facebook em debates sobre racismo no mês da Consciência Negra. O objetivo do estudo foi avaliar a relevância dos discursos veiculados nas redes sociais sobre o tema para pautar o debate sobre raça. O resultado foi publicado pelo Blogueiras Negras.
A Internet tem amplificado vozes de grupos de negras/os, indígenas e pessoas LGBTTQI’s: desde o começo dos anos 2010 tais grupos têm se organizado em blogs, páginas de redes sociais e plataformas de vídeo pautando temas pouco recorrentes na mídia tradicional como intolerância religiosa, educação para as relações étnico-raciais, estética, arte, cinema e literatura afro, etc. Essas afirmações fazem parte de nossas certezas no momento, mas a novidade desse cenário enseja novos questionamentos, principalmente no que se refere ao alcance de tais discursos em ao menos dois sentidos: sua capilaridade e relevância na esfera pública para pautar o debate sobre raça.
Estas questões estão presentes entre negros e negras que, a partir da experiência de produtores de conteúdo, conseguem ter a percepção da disparidade do alcance entre o material produzido por eles (capilaridade) e por outros grupos identitários, principalmente constituído de homens, brancos, cisgêneros. Na semana do dia 20 de novembro, em um debate conduzido no InternetLab com o youtuber Murilo Araújo (Muro Pequeno) e Charô Nunes (Blogueiras Negras) este tema esteve bastante presente, no entanto, o Brasil carece de estudos que tratem de mensurar essa percepção. Nos Estados Unidos, uma pesquisa conduzida pelos pesquisadores Johnnatan Messias (UFMG), Fabricio Benevenuto (UFMG) e Pantelis Vikatos (da Universidade de Patras) – “White, Man, an Highly Followed: Gender and Race Inequalities in Twitter” (“Branco, homem e muito seguido: desigualdades de gênero e raça no Twitter”), confirmam os dados sobre desigualdades no acesso ao conteúdo a depender de seu produtor na plataforma.
No que se refere ao que identificamos como um segundo sentido – relevância do material produzido por pessoas negras na esfera pública para pautar o debate -, buscamos realizar um experimento traçando como marco um momento em que questões raciais são amplamente discutidas: o dia da Consciência Negra.
O que e como fizemos?
Selecionamos as semanas anterior e posterior (13 a 27 de novembro de 2017) ao dia da Consciência Negra do ano passado para identificar e mensurar o engajamento de links. Foram selecionadas as primeiras 50 matérias encontradas utilizando o buscador do Google, na aba de notícias, e somente com resultados do Brasil com a palavra-chave “racismo”. O nosso indicador de engajamento foi feito com a soma de curtidas, comentários e compartilhamentos que cada um desses links obteve no Facebook.
Após mapear as 50 notícias identificamos um padrão: grande parte delas tratavam de casos de racismo. Criamos então uma classificação avaliando se o texto tratava do racismo ou de questões raciais por um viés individual (relatando apenas o caso particular); coletivo (realizando uma discussão mais ampla/estrutural sobre o fenômeno) e o que denominamos quasi-coletivo (aqueles que tratavam o tema de forma estrutural, com base em caso particular).
No primeiro gráfico, o tamanho dos círculos faz referência ao engajamento de determinado link no Facebook, e o resultado mostra que o engajamento de notícias individuais supera o de outras classificações em mais de dez vezes.
O segundo gráfico mostra também quais foram os assuntos individuais que dominaram a pauta nas semanas: os casos dos filhos de Taís Araújo e Bruno Gagliasso, do ator Diogo Cintra e do neto de Marieta Severo, principalmente. Vejamos:
O que esse experimento parece indicar?
Chamou-nos muita atenção a centralidade de casos particulares, envolvendo principalmente vítimas famosas na Internet, para além do caso do ator Diogo Cintra que sofreu inclusive agressões físicas no período.
Esses casos, emblemáticos e graves por si, merecem debate na esfera pública e resolução inclusive via judicial. Chama atenção, entretanto, que temas relacionados à questão racial, discutidos ao longo de todo o ano, escolhidos inclusive como mote/pauta por ativistas negras/os para o mês da Consciência Negra, não tenham tido o mesmo lugar ou nível de engajamento no período, o que pode indicar a suplantação de discussões de teor estrutural e o direcionamento do olhar para casos específicos.
O experimento parece explicitar duas características do racismo à brasileira amplamente discutidas em teorias sociológicas e antropológicas: (i) a não centralidade das vozes negras produtoras de conteúdo sobre si – num espaço em que estão fortemente presentes (a Internet) — o que tem a ver também e talvez principalmente com o modo como operam os grandes meios de comunicação; e (ii) a dinâmica da interpretação das relações raciais no Brasil: o preconceito e a crueldade estão no outro e, em contextos extremos, estão aqui no racismo contra crianças e adultos, com incidência também de violência física
No fundo estão vozes negras produtoras e temas que tratam o fenômeno do racismo a partir de uma leitura estrutural, relacionando-o com desigualdades e fenômenos históricos. Com este experimento e seu relato neste ensaio intentamos refletir e convidar ao debate novas análises que, se não mostrem que tais vozes e abordagens estejam na superfície por meio de outros parâmetros, auxilie na sua discussão ampla até que eles emerjam.
Equipe envolvida neste projeto: Natália Neris (natalia.neris@internetlab.org.br) e Lucas Lago (lucas.lago@internetlab.org.br).
Nota técnica: O experimento foi feito utilizando a interface disponibilizada pelo Facebook em https://developers.facebook.com/tools/explorer/, foi realizada uma busca para cada um dos links, selecionando os parâmetros “GET”, a versão “v2.9”, e inserindo os dados ?id=[url da página]&fields=id,og_object,engagement. A interface retorna como resultado dessa chamada algumas informações sobre o link passado além de informações sobre o “engajamento”. Um resultado semelhante pode ser obtido utilizando a extensão CrowdTangle disponibilizada em: http://www.crowdtangle.com/