Auxílio Emergencial: os desafios na implementação de uma política de proteção social datificada

Como parte de um projeto da Derechos Digitales sobre inteligência artificial na administração pública, o InternetLab lança relatório sobre Auxílio Emergencial, que analisa as características, objetivos e dificuldades do programa de transferência de renda da perspectiva dos dados e das tecnologias digitais.

Notícias Desigualdades e Identidades 04.07.2022 por Clarice Tavares e Mariana Valente

Com a pandemia de Covid-19 e a necessidade do isolamento social para conter a transmissão do vírus, movimentos sociais e lideranças dos partidos de oposição ao governo federal apresentaram projeto de lei que previa a criação de um programa de renda básica emergencial para famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, durante a emergência sanitária: o Auxílio Emergencial. 

Com uma rápida tramitação nas casas legislativas, o Auxílio Emergencial foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em 1° de abril de 2020, resultando na Lei n° 13.982/2020.  O programa foi concebido como uma política de transferência de renda, cujo objetivo era apaziguar os efeitos econômicos e sociais da pandemia da Covid-19, permitindo à parte mais vulnerabilizada da população a permanência do acesso a bens de consumos, sobretudo alimentação enquanto perdurasse a emergência sanitária.

Em razão do isolamento social, o requerimento do Auxílio Emergencial foi realizado de forma remota. Assim, para solicitar o benefício, o Governo Federal desenvolveu o aplicativo “Auxílio Emergencial”, em que a pessoa que pleiteava o acesso ao programa precisava fazer o download do app em um smartphone e realizar o cadastro, fornecendo dados cadastrais (nome completo, CPF – que devia estar regularizado -, e data de nascimento), informações pessoais a respeito da composição familiar, condições de trabalho e renda. A solicitação do benefício por meio de um aplicativo diferenciava o Auxílio Emergencial das demais políticas de assistência social e de transferência de renda do país, trazendo novos desafios e dificuldades de acesso ao benefício. 

Ainda, o Auxílio Emergencial foi desenhado como uma política pública datificada, nos moldes do Programa Bolsa Família. O processo de concessão do benefício foi automatizado, a partir de um intenso fluxo de dados que perpassava todas as etapas do programa. A seleção dos beneficiários foi realizada pela empresa pública Dataprev, por meio do cruzamento de dados dos cidadãos cadastrados no CadÚnico e do público que se cadastrava pelo app, com os critérios de elegibilidade do programa. 

O uso de tecnologias e de decisões automatizadas para o acesso e concessão do Auxílio Emergencial levantaram algumas questões: como se dava o processo de seleção dos beneficiários? Quais os desafios impostos pelo uso de um aplicativo para o acesso ao benefício? Existiam meios de contestação para as decisões automatizadas para o acesso ao Auxílio Emergencial? Como a  digitalização do Auxílio Emergencial se relaciona com as tendências de digitalização do Estado na América Latina?

Para responder a essas perguntas, em 2021, o InternetLab, em parceria com a organização chilena Derechos Digitales, realizou o estudo de caso sobre o benefício, “O Auxílio Emergencial no Brasil: Desafios na implementação de uma política de proteção social datificada.

Metodologia

A pesquisa faz parte de uma série de estudos de caso propostos pela organização Derechos Digitales, focados na análise crítica da implementação de tecnologias na administração pública na América Latina. Os estudos de caso, encabeçados pela Derechos Digitales, ocorrem no âmbito do projeto Cyber ​​Policy Center do IDRC. 

 O estudo foi realizado com base na metodologia proposta pela Derechos Digitales, que consistia em um questionário organizado em 5 grandes áreas: contexto nacional de implementação, contexto regulatório e institucional, infraestrutura de dados, processo de tomada de decisão e desenho tecnológico. Para responder às questões, analisamos bibliografia sobre o programa Auxílio Emergencial, a legislação e regulação do programa social, e realizamos entrevistas semi-estruturadas com gestores públicos envolvidos no desenvolvimento e implementação do Auxílio Emergencial. 

Resultados

No relatório “O Auxílio Emergencial no Brasil: Desafios na implementação de uma política de proteção social datificada”, destrinchamos as principais características do programa, como a legislação aplicável, fluxo de dados e órgãos responsáveis pela implementação do benefício; além das lacunas e vulnerabilidades encontradas no desenho do programa. 

Os principais achados da pesquisa foram: 

  • Revisão humana e judicialização. As decisões tomadas pelo algoritmo desenvolvido pela Dataprev implicaram, automaticamente, na concessão ou não do benefício, sem que haja qualquer decisão humana. Pela ausência de formas administrativas de revisão da decisão automatizada, a principal forma de contestação e de requisição de uma análise humana para concessão do benefício se deu pela via judicial. Por se tratar de um programa federal, a contestação judicial ocorria exclusivamente perante a Justiça Federal.  Como consequência da vulnerabilidade social e econômica das pessoas que requisitaram o acesso ao benefício, a maior parte da população que teve seu Auxílio Emergencial negado ou suspenso, e que optou pela via judicial como forma de contestação da decisão automatizada, recorreu à Defensoria Pública da União (DPU). No entanto, a capacidade da DPU para atender a todas as demandas por revisão era limitada. 
  • Dificuldades de acesso. Foram identificados, ao menos, quatro obstáculos para o acesso ao Auxílio Emergencial: (i) ausência de documentação requerida; (ii) exclusão digital; (iii) limitação de acesso à justiça; e (iv) bases de dados desatualizadas e erros cadastrais.
  • Efeitos na redução da pobreza. Apesar de todas as limitações e problemas de acesso que resultaram da automatização do Auxílio Emergencial, seu sistema datificado e automatizado permitiu que o benefício chegasse a uma enorme parcela da população rapidamente. Pesquisas sugerem que, ao menos em relação às primeiras rodadas do Auxílio Emergencial, o benefício impactou positivamente os níveis de renda dos brasileiros em situação de maior vulnerabilidade. 

O relatório completo sobre o Auxílio Emergencial pode ser lido no site da Derechos Digitales, em português, inglês e espanhol

compartilhe