Imagem do projeto, com fundo verde claro e o texto: responsabilidade de intermediários e a garantia da liberdade de expressão na rede. No canto superior direito, há uma moldura com fundo azul escuro e formato de bandeira com o texto: Especial Marco Civil 5 anos InternetLab

Responsabilidade de intermediários e a garantia da liberdade de expressão na rede

Especial Liberdade de Expressão 23.04.2019 por Thiago Oliva

Por Thiago Oliva*

Imagem do projeto, com fundo verde claro e o texto: responsabilidade de intermediários e a garantia da liberdade de expressão na rede. No canto superior direito, há uma moldura com fundo azul escuro e formato de bandeira com o texto: Especial Marco Civil 5 anos InternetLab

A aprovação do MCI colocou fim ao que foi, por muitos anos, uma grande incerteza jurídica no Brasil: o regime de responsabilidade de intermediários. Definir esse regime não resolveu apenas questões de responsabilidade civil, trazendo consequências diretas para o exercício de direitos fundamentais, como os direitos à liberdade de expressão e ao acesso à informação no Brasil.

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Muitas plataformas de internet, como Facebook, Twitter e Youtube, operam a partir da publicação de conteúdos gerados por terceiros. A responsabilidade por eventuais danos causados por esses conteúdos tornou-se, portanto, ao longo dos anos, uma questão sensível: de um lado, argumentos ligados a direitos como liberdade de expressão e acesso à informação justificavam a adoção de modelos regulatórios que isentam as plataformas de responsabilidade por conteúdos postados antes que haja decisão judicial que os considere como ilegítimos ou ilegais, garantindo que suas políticas e termos de uso comportem a divulgação ampla e plural de conteúdos; de outro, argumentos ligados a direitos como privacidade, honra e imagem justificavam a adoção de arranjos regulatórios que impõem circunstâncias mais variadas de responsabilização, incentivando as plataformas a implementar políticas mais restritivas, na tentativa de evitar o risco pela condenação ao pagamento de indenizações.

Em meio às discussões que antecederam a aprovação do MCI, a primeira linha de argumentação prevaleceu, o que resultou na adoção do modelo de responsabilização constante do artigo 19, atualmente vigente:

Art. 19.  Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

Essa redação recebeu, inclusive, amplo apoio da sociedade, tendo resultado de um longo processo legislativo que contou com grande participação popular, envolvendo interessados e representantes de todos os segmentos – academia, sociedade civil e comunidade técnica, além dos setores público e privado. Graças a uma plataforma virtual desenvolvida pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, a consulta pública sobre o então projeto de lei nº 2126/2011 recebeu mais de 2 mil contribuições.

O artigo 19

O art. 19, central para o quadro regulatório introduzido pelo MCI, estabelece uma forma de responsabilidade subjetiva por danos decorrentes da veiculação de conteúdos gerados por terceiros na internet. Com base nesse dispositivo, os intermediários (também chamados de “plataformas de internet” ou “provedores de aplicações”) são passíveis de responsabilização por conteúdos publicados por seus usuários apenas quando, sendo notificados de decisão judicial específica determinando a sua remoção, não tomarem providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como ilícito pelo Poder Judiciário.

É importante destacar, contudo, que a lei expressamente afasta a aplicação da regra do artigo 19 para a solução de casos envolvendo direito autoral (art. 19, §2º) e estabelece regra diversa para casos que digam respeito à divulgação não consensual de imagens íntimas (art. 21) – nesse último caso, o intermediário torna-se responsável por conteúdos publicados quando for notificado pelo(a) usuário(a) prejudicado(a) e não agir para removê-los.

Foi uma regra parecida, adotada pelos EUA no artigo 230 do Communications Decency Act, que levou plataformas como YouTube, Facebook e Twitter – cujo modelo de negócio é estruturado em torno da publicação de conteúdos gerados por terceiros – a crescer e a consolidar sua presença no ambiente virtual como espaço para o exercício da liberdade de expressão de usuários na rede.

O que pensam especialistas de organismos internacionais

O modelo atualmente em vigor no Brasil é considerado como aquele que mais privilegia o exercício da liberdade de expressão e o acesso à informação na rede. Nesse sentido, Frank La Rue, antigo Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a promoção e a proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, elogiou explicitamente as legislações de países como Chile e Brasil, que admitem a responsabilização de intermediários de internet apenas após a apreciação da legitimidade dos pedidos de remoção de conteúdo pelo Poder Judiciário.

Seguindo o mesmo raciocínio, o atual Relator Especial da ONU para o assunto, David Kaye, também chamou atenção para os riscos de modelos que pressionem os intermediários de internet para promover a remoção de conteúdos gerados por terceiros antes de apreciação judicial. Em relatório apresentado em 2018 no Conselho de Direitos Humanos da ONU, Kaye destacou que essa pressão costuma resultar em um aumento dos casos de remoção de conteúdos lícitos, o que interfere diretamente no grau de tutela conferido à liberdade de expressão no ambiente digital.

No âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Edison Lanza, Relator Especial para questões relacionadas à liberdade de expressão, também considera problemáticos os regimes de responsabilização que transferem do Judiciário para os intermediários de internet a responsabilidade de examinar e decidir pela legalidade ou ilegalidade de certos conteúdos. Isso porque, segundo ele, o caráter privado desses intermediários impede que atuem de forma isenta e legítima na apreciação desses casos, podendo fazer com que interesses econômicos prevaleçam em detrimento da liberdade de expressão e do acesso à informação dos usuários.

O que apontam as pesquisas do InternetLab

(i) o crivo judicial é essencial para garantir que pedidos de remoção infundados não suprimam conteúdos legítimos

O Dissenso.org, projeto desenvolvido pelo InternetLab, conta com um extenso repositório de decisões judiciais que envolvem o exercício da liberdade de expressão no ambiente digital (“Casoteca”). Esse banco de decisões é alimentado semanalmente, sendo composto, sobretudo, por decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos mencionados nas salas de imprensa dos tribunais ou amplamente divulgados pela mídia. Apesar de não se tratar de um banco de decisões exaustivo, o repositório do Dissenso.org apresenta um retrato representativo das principais tendências jurisprudenciais a respeito da liberdade de expressão e acesso a informação no ambiente digital no Brasil.

Considerando os dados gerados a partir desse repositório, que contava com 152 decisões catalogadas em agosto de 2018, apenas em 33,5% dos casos envolvendo pedidos de remoção de conteúdo na internet esses pedidos foram deferidos ou confirmados em segunda instância – ou seja, em mais de 60% dos casos, os pedidos de remoção foram considerados ilegítimos, infundados ou abusivos, e o seu pronto atendimento pelas plataformas implicaria a remoção de manifestações e conteúdos legítimos. Nesse sentido, a isenção de responsabilidade até a apreciação do Poder Judiciário incentiva as plataformas a mantê-los no ar, em vez de censurá-los preventivamente.

Gráfico de barras de título: Decisões judiciais sobre pedidos de remoção de conteúdos de terceiros e dois dados contidos no gráfico: Pedidos considerados legítimos (deferidos), em azul representando 33,50% e Pedidos considerados ilegítimos ou abusivos (indeferidos) em laranja representando 66,50%
Fonte: InternetLab

(ii) o modelo regulatório em vigor no Brasil previne o uso de notificações extrajudiciais como forma de cerceamento à expressão

De acordo com pesquisas desenvolvidas pelo InternetLab, especialmente aquelas ligadas à veiculação de conteúdos humorísticos na internet, políticos, autoridades, figuras e instituições públicas podem fazer uso de notificações extrajudiciais, ações de identificação de usuários de internet e outras representações judiciais de maneira estratégica, com o objetivo de censurar críticas dirigidas a elas, cerceando o exercício da liberdade de expressão e o acesso à informação sobre questões de interesse público.

Este tipo de estratégia, utilizada para tentar suprimir discursos críticos na internet, poderia ser enquadrada no conceito desenvolvido por autores estadunidenses de “Strategic Lawsuit Against Public Participation” (AJEPP) ou Ação Judicial Estratégica contra Participação Popular, em português.

As AJEPPs são procedimentos judiciais ou extrajudiciais iniciados por entidades, corporações, agentes públicos – dentre outros agentes dotados de poder político e/ou econômico – direcionados a silenciar discursos críticos. Em geral, as AJEPPs se concretizam via uma ação judicial por difamação, precedida de uma ameaça extrajudicial. Os autores não buscam, necessariamente, uma vitória judicial, mas intimidar aqueles que têm o poder de impedir que determinados conteúdos circulem.

A mera notificação extrajudicial é uma das estratégias empregadas, já que é suficiente, por si só, para sufocar o debate público sobre determinado tópico: a existência de uma ameaça de processo intimida tanto o autor da crítica quanto o responsável pelo meio em que ela foi difundida, criando um desestímulo econômico para que o conteúdo seja mantido no ar. As AJEPPs também servem como “advertência” aos demais interessados no debate: críticas ácidas serão alvo de processos custosos, portanto, é melhor pensar bem antes de ousar se expressar livremente.

O regime de responsabilidade introduzido pelo artigo 19 impede que as notificações extrajudiciais intimidem as plataformas de internet, assegurando que os conteúdos permaneçam no ar até que haja decisão judicial declarando-os ilícitos. Caso contrário, as plataformas teriam grandes estímulos econômicos para remover conteúdos de maneira preventiva, afastando risco de eventual responsabilização junto ao Judiciário.

Aprofunde-se

Para ler mais sobre os assuntos discutidos aqui, veja:

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Thiago Oliva é coordenador da área de liberdade de expressão no InternetLab.

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